Leviathan e outras críticas na revista cinética

Camile

Leitores, se os tenho, fica um aviso. Desde dezembro  tenho colaborado com a revista cinética, de quem sempre fui um leitor assíduo. Se compartilho isso aqui, nesse amontoado da minha produção mais pessoal e recente, não é por acaso. Muito da minha intenção  – e da dedicação do meu tempo – para escrever crítica “de cinema” foi, pouco a pouco,  migrando para esse projeto coletivo. E é prazeroso reverberar num debate que te ultrapassa, que coliga suas inquietações junto a uma teia de afinidades eletivas. Sim, eu sei, já se foi algum tempo e eu poderia ter comentado essa notícia um pouco antes. Mas se tiverem curiosidade podem ler um pouco da minha escrita mais contemporânea, como uma crítica que escrevi sobre  Amor do Michael Haneke, a cobertura que fiz da Berlinale , com resenhas de filmes como Camile Claudel, 1915 de Bruno Dumont, The Grandmaster Wong Kar-Wai, Promised Land de Gus van Sant, Harmony Lessons do jovem cineasta Emir Baigazin, Nobody’s Daughter Haewon de Hong Sang-soo entre outros. Também publiquei na Cinética um ensaio que sintetiza muitas das minhas ideias mais recentes, que foi fruto da pauta coletiva sobre Dispositivo e chama-se  Dramaturgia da dúvida. Nessa última edição, de julho, contribuo com um ensaio sobre o filme Leviathan de Lucien Castaing-Taylor e Véréna Paravel, obra ímpar que me impactou de forma intensa e que logo deve entrar em cartaz no Brasil. O “trailer” está nesse link: https://vimeo.com/45252172  e fica a dica de verem essa obra. Será um prazer, enfim, comentar por aqui qualquer um desses filmes/textos, ampliando, quem sabe, nossas inquietações cinéfilas.

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Oslo, 31 de Agosto.

Nunca visitei Oslo. É provável que nunca pisarei lá. No entanto, há algo na ponta do mar nórdico que me intriga, como me encanta qualquer cidade charmosa, quando bem filmada. Encantamento, sim, já que ladeiras desconhecidas aguçam a curiosidade. A capital da Noruega tampouco aparece de forma concreta nesse último e singelo filme de Joachim Trier. É uma Oslo sentimental, etérea, de muitas vozes, de memórias sobrepostas, apagadas, pisoteadas – como realça sua bela seqüência inicial. Uma cidade ao léu que bem poderia ser uma Dublin num 16 de junho, pelo punho de Joyce, ou tantas outras cidades, num dia qualquer. Importa pouco, afinal, onde realmente estamos. O que pulsa são as tortuosas vielas que nos habitam. E as ruas das cidades, sempre amplas, indiferentes, foram – e são – erguidas pelas mãos de mortos, que, insistentes, discretos, nos sussurram algo, entre concretos e paralelepípedos.

É como um espectro, um tanto à beira, um tanto morto, que Anders, o protagonista desse filme, perambula por Oslo. Ele volta a viver com os homens “normais” após meses de tratamento para viciados em drogas. Como eu, ele tem trinta e quatro anos, mas sua vida carece de qualquer sentido. Poderia ter sido um escritor, e não foi. Poderia estar com a sua namorada, mas ela sequer atende suas inúmeas chamadas. Poderia estar com a família, mas a irmã não quer vê-lo. Numa entrevista de emprego, percebe-se que ele tem um vácuo de seis anos no seu currículo, para o qual, ele foi sincero: era um drogado. Não há compreensão, mas um riso nervoso. Anders não está em lugar algum, entre nenhum vínculo afetivo. Ele paira – e a cidade continua indiferente, ignorando-o. Enquanto, isolado, toma um café, ele ouve os desejos fúteis dos seus conterrâneos. Anders é oco, e essas futilidades ressoam numa dramaturgia que também sabe, com elegância, afastar-se do seu personagem. Mesmo oco, tudo ecoa nele com afetos intensos. Anders parece fora do tempo, `a parte, à margem, num ponto de vista que tampouco é heróico, mas de um fracasso amargo de suportar, pois não eivado por revolta alguma.

Assim como os protagonistas dos dois filmes de Mia Hansen-Løve, Anders está numa situação limite. A heroína que o seduz não tem o quê heróico que transpassa em Transpotting, de Boyle. Ela se instala entre os desarranjos de uma casa há muito abandonada. Uma casa que se permite flertar com ruínas, mas que continuará no mapa da cidade.  Nem o afã boêmio, ou uma sereia da noite, parecem suficiente para acolhe-lo. Sobre a piscina, o dia recomeça. Oslo volta a ser a mesma cidade – de todos, de ninguém. Uma cidade – que nunca conhecerei – cadenciada pela alvorada, bonita, que sem querer, ao acaso, o ingrato acaso, desdenha o lento e perene ocaso dos seus habitantes. Uma cidade qualquer, num dia como hoje.

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TABU, de Miguel Gomes

Tabu

Numa das cenas mais interessantes de Tabu, último filme de Miguel Gomes, o narrador evoca Dom Quixote. Estamos na segunda parte da estória, quando Gian Luca Ventura apaixona-se por Aurora, na África. Ambos vão à “festa da piscina”, numa famosa casa de um senhor abandonado pela sua esposa. Desesperado – e sempre doente de melancolia, como todos os personagens do filme, este senhor costuma carregar uma arma e, enquanto toma seu copo de Whisky, brinca de roleta russa. Acabou, comenta o narrador, por tirar sua vida numa dessas arriscadas brincadeiras. Seu filho ficou meio desmiolado depois de passar um tempo em Marseille, pois lá praticou o boxe tailandês. Assim como o Fidalgo da Triste Figura, o Quijote, em certas ocasiões esse filho vê seus moinhos de vento e dá soco e chutes ao léu, sem, obviamente, existir ninguém por perto.

Tabu tem algo de quixotesco. Não apenas por filiar-se a essa rica tradição ibérica de narrativa, mas, sobretudo, por convidar o espectador a fabular e a construir a estória juntamente com todos que dela participam. Em Tabu a imagem é tal como um moinho de vento. Sobretudo na sua segunda parte. Apenas ocasionalmente ilustra-se o que se conta e imagina-se mais do que realmente se vê, pois o filme acontece no vácuo. Quando autônoma, a imagem pulsa prenhe de silêncio.

De forma elegante, Miguel Gomes traça um contraponto no qual a imagem ganha um ritmo e uma independência e segue sutilmente desencontrada com o som e a voz do narrador, sempre romanesco. São autonomias e delays engendrados pela narrativa, pois a sincronia da fábula é maquinada pelo espectador. Por  isso, o que vemos são filmes dentro de filmes, como as estórias dentro de outras estórias, do Jorge Luis Borges leitor de Dom Quixote. Longa, a espiral da ficção não tem começo – nem fim.

A ironia é outro ente entremeado neste singelo filme. Uma ironia, diga-se de passagem, que muito recorda o tom do João Cesar Monteiro, outro cineasta português digno de nota e bem influente aos conterrâneos e cinéfilos mais novos. No filme, personagens como Pilar, com seu catolicismo piedoso, altruísta, e Santa, que cuida de Aurora, na sua velhice solitária, são todos eivados por desencontros e infortúnios leves, que apenas tangenciam uma comédia. Assim como a “África” que, de forma proposital, pulsa na profundidade de campo, num exotismo que insiste em manter-se exótico. Parece que estamos no meio de uma película da RKO nos anos cinqüenta, na qual a “África”, como um nome tão vago como o “Monte Tabu” é um território de sonhos absurdos e escamoteia os atos espúrios da colonização.

De forma inteligente, Miguel Gomes não traça um discurso pós-colonial, mas insere seu tema e seu filme numa moldura colonial. Por isso, talvez, tudo na sua mise-en-scene seja permeado por coisas e objetos um tanto fora de contexto. Nessa África, os meninos correm atrás da câmera, os velhos a encaram frontalmente ou simplesmente entram em cena no momento combinado – fatos extras que seriam cortados numa filmagem da RKO. É nesta mesma África que se sofre de amor e uma banda romântica canta em inglês músicas exóticas aos ouvidos do povoado que trabalha para aquelas fazendas.

Em Tabu, o colonialismo adquire contornos melancólicos, o que gera uma química bem interessante. No primeiro plano vemos uma sedutora história de paixão, traição e de cartas românticas. Uma história que, convenhamos, gera encantamento. Os personagens, contudo, sentem saudades daquela juventude perdida e a tornam dourada, a despeito do colonialismo, sempre em segundo plano. Aos poucos, Miguel Gomes parece nos convidar a rir dessa melancolia portuguesa. Por seu tom exagerado, por seus incessantes lamentos – essa melancolia torna-se uma ponte para a ironia do diretor. Como o crocodilo, que está em todos as estórias e as coliga de forma surpreendente. Esse crocodilo, devorador de todas aquelas ficções, é um tanto ridículo. E, no entanto, entoa um estranho canto melancólico.

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SHOAH, de Claude Lanzmann

Shoah é mundialmente difundido como um dos mais longos filmes da história do cinema. Tem quinhentos e sessenta e seis minutos,  – e, ao terminar de vê-lo, fico pensando que todo esse tempo é irrisório, mesmo ínfimo, perto do absurdo dos campos de concentração arquitetados pelos nazistas. Claude Lanzmann, seu diretor, foi minucioso e obsessivo na sua busca de reconstrução desse projeto, na recuperação das narrativas, na pesquisa por cenas pequenas, cotidianas, no posicionamento de quem esteve no palco desse teatro inexprimível. Não há um convite, nessas nove horas do filme, para compreender o horror, mas sim de encara-lo. Frente a frente. Mesmo que as imagens sejam apenas longos planos gerais, o horror revela-se não pelas fotos, mas pelos atos dos entrevistados.

De maneira perspicaz, Lanzmann aborda três grupos de pessoas para construir esse complexo mosaico. Primeiro, os sobreviventes. Eles são o cerne do filme. Como se tivessem a obrigação, quase religiosa, de contar aos outros o que se passava e o que acontecia nos crematórios, entre os arames farpados e os panópticos de Treblinka e Auschwitz. Nesses depoimentos, percebe-se uma conexão óbvia de Lanzmann, que também é descendente de judeu. No entanto, o discurso, aqui, não é de vítima, mas de um gesto que tenta conectar-se com uma memória sufocada que encontra-se tênue, quase perdida, pois, amedrontada por uma recente diáspora judia.

O segundo grupo é o dos “funcionários” nazistas, os executivos e representantes da “banalidade do mal”, como Hannah Arendt descreve em Eichman em Jerusalém, livro seminal para compreender esse episódio. Lanzmann, nessas entrevistas, é mais cínico. Ele não consegue dissimular uma neutralidade quando encontra alguns funcionários que trabalharam, de fato, na execução de milhares de judeus. Alguns desses nazistas, ainda orgulhosos, chega a cantar as melodias que entoavam naquelas bizarras paisagens. No filme, Lanzmann deixa claro ao espectador que algumas daquelas imagens não foram autorizadas a serem veiculadas pelos entrevistados. São imagens roubadas, assim como roubaram a vida de seis milhões de judeus. O que numa linguagem pura e ingênua soaria como anti-ético, revela-se o seu oposto; ou seja, faz sentido expor o horror, mostra-lo, e até conversar com ele quando se insiste em manter um perigoso silêncio.

O terceiro grupo foi, pessoalmente, o que mais me chocou. De forma sutil, Lanzmann filma alguns camponeses poloneses que testemunharam os campos de concentração. Viam a fumaça, sentiam o cheiro da morte, os trens chegando cheios, voltando vazios. No entanto, nada faziam. É claro que eles também estavam sob a mira dos nazistas, num contexto de guerra. Mas Lanzmann é hábil para mostrar como havia, ali, mesmo entre os poloneses, um anti-semitismo latente. Numa das entrevistas, um dele diz que os judeus precisavam mesmo ir embora dali, mas poderiam ter sido de outra maneira, mais branda. Nessa omissão, nesse silêncio das testemunhas do cotidiano do horror, há um gesto político. Como se a banalidade do mal também tivesse um véu de leniência.

O cerne do argumento de Shoah é diretamente influenciado pelo historiador Raul Hilberg, autor do livro The destruction of the European Jews. Ele está no filme e na sua entrevista mostra como o campo de concentração foi, de fato, a grande invenção histórica dos nazistas. Até então, o anti-semitismo sofria com medias como o gueto, posto em prática em Praga há alguns séculos, a discriminação, o boicote e a humilhação pública. No entanto, o campo de concentração encarava a morte como uma solução lógica, racional e pragmática de resolver o “problema” dos judeus.

Aprende-se muito vendo Shoah. Não apenas por um documento histórico único, mas porque dali, de Shoah, percebe-se a construção de uma forma narrativa e memorialística permeada pelo trauma, o horror e a diáspora, uma espécie de gênero que influenciou escritores como W.G. Sebald e histórias como as de Ariel Spielgman. São formas de resistência, ainda que tardias, de uma máquina de guerra que manchou o século XX e a nossa história. São cacos de um totalitarismo, infelizmente ainda pulsante. E essa mancha, não se apaga.

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2012 em onze filmes

Nunca curti muito essa onda de lista de melhores filmes, ao final do ano, e cá estou me contradizendo – postando uma. Listas são pessoais, com poucos ruídos, sem polêmicas e, para quem as acompanha, como eu (e você), percebe-se que são todas bem similares. Minha listinha abaixo não fugirá da regra. Não terá surpresas e não se envergonha disso. Talvez difira por ter onze filmes ao invés de dez. Grandes coisas: só coloquei onze obras porque não consegui reduzir o número. Mas, acredite-me, esses foram os filmes que, após as luzes acesas, depois de sair da templo-cinema, eu sentia-me diferente. São filmes “literários”, quem sabe, que, pelo êxtase, nos proporcionam uma quebra sensível do nosso dia a dia. Filmes que me levam a escrever e a querer compartilha-los, discuti-los, revê-los.

Não estranhe ao ver cinco filmes brasileiros. Não costumo fazer essa distinção de nacionalidades no meu estranho cânone. São filmes que considero bons. E ponto. Aliás, penso que o maior problema conceitual de uma crítica do cinema brasileiro é considerar essas obras antes brasileiras do que filmes. Talvez seja uma ressaca de uma certa reserva de mercado vinda de tempos de escassez de produção e uma luta dos anos setenta aguçada pelo fosso que foi o fim do embrafilme nos idos noventa. Enfim, isso já faz algum tempo e creio que a pauta dos últimos filmes – da crítica – e de uma nova geração mais recente mudou, e bastante. Penso que a melhor maneira de criticar um filme “brasileiro” é contrastá-lo com o cenário internacional com os diversos nichos com os quais cada obra, hoje, dialoga. O epíteto de “cinema brasileiro” tende a homogeneizar obras, diretores e estilos muito diferentes. Mas isso é outro assunto… .

Há, na lista, poucos documentários. Só destaquei o filme de Adirley, que quase não é um Doc, e o do Cao Guimarães. Dos Docs que vi esse ano apenas esses dois me tiraram o fôlego. Películas que sequer entraram em cartaz… .

Acho que me alonguei demais numa explicação – e esses argumentos costumam ser mais enfadonhos que a própria lista.

Moonrise Kingdom, de Wes Anderson

Anderson me levou de novo à magia da adolescência nessa pequena obra-prima. Um filme leve, com humor, delicadeza, e envolto por uma preciosa paleta de cores. Difícil não sair seduzido por Suzy e Sam e suas aventuras impetuosas. Wes Anderson faz tudo com tanta precisão que me senti vendo um filme da sessão da tarde quando, sei lá, ainda estava na primeira infância. Não é qualquer diretor que consegue encantar e dizer que está te encantando com um mão tão sutil e firme. Além disso, Anderson também destila uma ironia requintada a sociedade americana. Como se os escoteiros e aquela ilha fosse um microcosmo de insanos. Uma delícia.

Otto, de Cao Guimarães

Nem de longe é melhor filme de Cao Guimarães. Prefiro Ex-Isto, filme de 2011 que quase ninguém comentou. No entanto, acho que Otto fecha um ciclo de uma guinada subjetiva no cinema contemporâneo. Ao invés de uma autobiografia calcada no passado e no trauma, Cao filma a espera, os instantes em que aguarda-se o filho por vir,  as boas-vindas de uma nova vida. Esse tom é bem diferente. É claro que o filme tem uma mão um tanto pesada no poético – mas quando acerta, é como as fagulhas de um Godard, vale uma obra inteira. Lembro que levei uma turma de alunos – boa parte calouros – no Festival de Brasília para ver o filme. Era sua estréia e nenhum dos alunos sequer sabia quem era Cao. A metade me odiou. Mas a outra metade ficou atônita, em êxtase. Ninguém pairou indiferente. Para mim, essa ambigüidade de reações é a maior força da experiência do cinema. E, tenho certeza, nenhuma estatística consegue medi-la.

Tabu, de Miguel Gomes

Sei que não foi lançado no Brasil, mas Tabu não pode deixar de entrar numa lista dessas. É um filme de uma elegância rara, que consegue elaborar um sofisticado contraponto entre nostalgia e ironia. Para mim, ele consegue realizar o projeto, fracassado de O artista; ou seja, Tabu traz uma aura nostálgica precisa evitando pieguices ilusórias. Muitas vezes ele duvida da sua própria nostalgia, pois revela o lado ridículo de um projeto colonial. Noutras vezes, essa mesma nostalgia – da juventude e do amor – nos convence e compartilhamos sensações ambivalentes. O filme é composto por hiatos, por fossos, cheio de portas de entrada para o espectador que, discretamente, envolve-se e ele mesmo ativa toda a maquinaria ficcional.

A cidade é uma só?, de Adiley Queirós

Um filme necessário. Sou de Brasília e sempre morei no plano piloto. Sinto na pele essa diferença do ponto de vista da Ceilândia, que Adirley traz para o filme – e para todo o seu posicionamento político. Ela é fundamental para embotar uma certa cegueira presente no discurso, bem oficial, que enaltece a cidade modernista. Ou, por outro lado, por uma crítica superficial para aqueles funcionários públicos muito bem pagos que, comodamente, reclamam do transporte público. Adirley mostra o avesso do avesso do avesso desse projeto modernista, mas de uma maneira inteligente, chutando o balde para a ficção, para uma utopia que nasce de uma dialética negativa e, assim, foge de uma estética do ressentimento. Lembrei da ousadia ficcional de um Tarantino que fabula um final catártico e sádico contra os nazistas, em Inglrious Bastards. A ficção é esse espaço do possível. Mais político ainda, o cinema de Adirley  busca instaurar a diferença. A cidade é uma só? tem altos e baixos, mas sua pegada é coisa rara.

Holy Motors, de Leos Carax.

O último filme de Leos Carax podia ser um manifesto tardio sobre a força estética de um cinema extemporâneo. Como cinéfilo, seguidor dessa clássica e desbotada cinefilia francesa, não consigo ficar indiferente a essas reações frente ao ocaso do cinema. Sinto-me em extinção e prefiro perder-me com Carax e seus personagens pelas ruas de Paris. Um cinema feito com tesão.

Escrevi um ensaio mais completo sobre esse filme de Carax na Revista Cinética, que está com um dossier bem empolgante sobre o cineasta francês. Dica de leitura para quem gostou ou ficou encafifado com o filme.

O soma ao redor, de Kleber Mendonça Filho.

O primeiro longa-metragem de Kléber Mendonça Filho tem o mérito de apostar na narrativa e de saber desenlaçá-la com calma, precisão e, ainda, valorizar o suspense. Numa leitura óbvia, o melhor do filme está na requintada atmosfera sonora e no seu poder sugestivo. Pelo som, o espectador vai compondo paisagens, tecendo geografias, percebendo os afetos dos personagens. De uma rua chega-se à Casa-Grande, ao coronelismo em Pernambuco persevera à revalia dos séculos. O filme tem o mérito de colocar esse problema – essa fenda social – sem deixar que ele sobressaía aos rumos dos seus personagens. É um filme que precisa ser revisto e certamente merece uma critica mais minuciosa.

Ha Ha Ha, de Hong Sang-Soo

O filme é de 2010 mas estreou esse ano no Brasil. Obra singela, de conversa, de papos intermináveis, de trocas de casais e uma bohemia . Sang-Soo tem um estilo muito prosaico de filmar que valoriza o cotidiano de uma maneira próxima de Ozu e de toda essa filosofia que vê mais beleza nas coisas que se repetem do que nas mudanças. Do poucos filmes de Hong Sango-Soo que vi reparei que ele tece uma dramaturgia da hesitação. Sim, seus personagens são construídos sob a sombra da dúvida e nela ficam durante quase o filme inteiro. Como se o cotidiano fosse o espaço paradoxal que abriga as nossas dúvidas atenuadas pelo automatismo das obrigações do dia a dia. Isso é o oposto da dramaturgia aristotélica na qual a dúvida deve ser apenas um momento de tensão para a escolha, a resolução e o objetivo dos personagens. Sei que parece paradoxal – e de fato é mesmo – mas para mim a melhor parte do cinema contemporâneo ergue-se construindo um realismo que tem na dúvida um dos pilares. E para complicar mais ainda basta lembrar de Miguel de Unamuno que dizia ser a dúvida a base da fé… .Mas Unamuno é ocidental e católico demais para Hong Sang-Soo.

  

Girimunho, Clarissa Campolina, Helvécio Martins

Um filme de paisagens e com presença forte de um personagem extraordinário. Encontra-se, aqui, pelo roteiro, o ponto certo entre a fabulação e a narrativa. A morte, sempre a morte, de tão concreta, ganha asas próprias e isso destila uma delicadeza que transforma-se na força do filme. São óbvios os ecos de Guimarães Rosa e Apichatpong, o que não diminuí a obra, que tem força própria para nos conduzir a todo um universo cosmológico, sem o espanto do exótico, bem antropológico, nem a má consciência do olhar urbano. É do local, da sua força, que emana-se uma história. Simplesmente voamos com Dona Bastu.

Fausto, de Alexander Sokurov

Fausto parece o epílogo da tetralogia que filme Lênnin, em Taurus, Hiroshito, em O sol, e Hitler, em Maloch. Sokurov busca fazer um longuíssimo e profundo ensaio histórico sobre a ontologia do mau. Para isso, Fausto serve como uma luva. É desse receio do medo, do inexplicável, que nasce Mephisto. O diabo, aqui, é menos um ente do mau do que o espelho da vaidade de cada uma dessas figuras, seja Fausto ou as personagens políticas do século XX que Sokurov filmou. Se fosse para resumir numa frase eu diria que políticos dessa estirpe não amam. Tragédia de Fausto está nessa perda do amor que serve como base para a construção de um projeto de desenvolvimento. Esse mito arrepia e o filme o traz numa luz vibrante, em espaços contíguos, numa arquitetura intercalada por sombras alongadas.

Amour, de Michael Haneke

Toda vez que começo a ver de Haneke sinto um medo do que vem pela frente. Adoro seu cinema, mas sei que ele beira a um pessimismo e uma crueldade muitas vezes difíceis de suportar. Esses dias fui ver Benny’s vídeo e saí com medo de todos os filhos e de todos os pais que existem por aí. Essa pegada continua em Amour, mas certamente, está cadenciada pela aposta no afeto. Há uma troca entre os personagens, estranha e, às vezes, até perversa, mas ela existe. Não se engane quem for ver o filme esperado algo romântico. Amour toca mais fundo na morte do que em qualquer outra coisa. Lembro de Simone Beauvoir, à beira da cova de Sartre, na sua despedida, dizendo que também morria ali. Parece exagero, mas Haneke, nesse filme, quer apenas compartilhar esse face a face real com a morte. Isso, delicadamente, beira o insuportável.

Cosmópolis, de David Cronenberg

Cronenberg filma sensações estranhas e cria uma atmosfera urbana e psicológica bem bizarra em Cosmópolis. O capitalismo em colapso, o absurdo financeiro, um cabelo a ser cortado. São situações inusitadas, esquisitas, conversas que parecem sem sentido, onde, na verdade, nada mais significa, apenas passa. Dentro da limusine vemos um mundo blindado, onde nada afeta, onde não há troca, mas apenas o desfile da superfície que produz crises, inventa e dissolve países. Acho, nesse filme, que Cronenberg conseguiu filmar a essência de uma mentalidade pós-industrial. Por isso, talvez, tudo soe tão volátil.

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Harun Farocki – Parallele

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Galerie Barbara Weiss, Kreuzberg, Berlim. Lá vi três dos últimos vídeos de Harun Farocki . O local, propício. Kreuzberg é um bairro conhecido por arraigar uma pletora de turcos. Às vezes parece mais uma fronteira com a cultura árabe – um portão de Constantinopla – do que um local propriamente germânico. Coisas de cidades porosas, pós-coloniais. Fui com a artista argentina Julia Mensch, Aurélio, seu companheiro e Marcelo, um amigo nosso. Antes, Julia me levou para saborear um Falafell especial – o melhor dos tantos que já comi por aqui. Pronto, tudo parecia no ponto para acompanhar a produção desse cineasta turco-alemão.

Farocki está em alta. Aqui, no Brasil, mundo a fora. Recentemente passou uma semana no Rio e fez um seminário por lá. Tem muito livro, artigo, tese e dissertação sobre ele. Farto material. Há quase um ano, a Absolut Medien lançou uma caixa com cinco Dvds e a maioria dos seus filmes assim disseminou-se em velocidade exponencial, dado o ritmo torrent. Fenômeno igual ao que Jonas Mekas vem recentemente experimentando.

Farocki é um cineasta mais velho, que emergiu junto do movimento do “cinema novo alemão”. Sempre, desde os anos sessenta, esteve um tanto à margem dos agitadores que estiveram próximos ao Manifesto de Oberhausen e da Filmautoren Verlag, que produzia os filmes de Klug, Fassbinder, Schöndorf, Herzog e Wenders.  Seu agito diferia. Em parte por opção, Farocki parou no vídeo e nas instalações para galerias, uma ilha de tranqüilidade – e isolamento – para os documentaristas daquela época e de hoje. Em parte, à margem, por se situar nessa tensa fronteira que é sua condição dos turcos da segunda geração.

No filme Aufstellung, de 2005, isso fica bem claro. Farocki aborda diretamente a propaganda para chamar os Gastarbeiter – o momento, no meio da guerra fria, em que a Alemanha convida estrangeiros para trabalhar no país. Mostra-se, no filme, apenas as propagandas visuais. Sem som. Numa montagem seca e precisa, Farocki nos faz ler os anúncios, a linguagem padronizada para ensinar a língua alemã, as estatísticas, os gráficos, as manchetes de jornal. Nada mais. Essa secura do discurso narrativo deixa uma obra visual que fala por si. Aos poucos, ele revela como a cultura alemã é vidrada por posicionamentos, localizações, pontos precisos no mapa, no discurso, na gramática, nos números. É dessa linguagem gráfica e visual – dessa materialidade – que nasce sua crítica. No decurso dessa linguagem de propaganda e de jornalismo, ele mostra como os trabalhadores convidados proliferaram-se e – agora – precisam ser evitados. Numa montagem dialética refinada ele faz uma comparação com os gráficos, os mapas e as propagandas da Alemanha ainda ressaceada da sua derrota na primeira guerra. Gráficos que comparam o crescimento de imigrantes – e judeus – com o aumento do desemprego. Subitamente, o filme acaba. Daí, camarada, difícil não estremecer.

Aufstellung nos mostra um ponto de vista vindo de conceitos – e são essas técnicas de pensar, ver e reproduzir o mundo que mais interessam Farocki. Talvez ele seja dos cineastas mais influenciados por pensadores como Paulo Virilio, Flusser, Kitler e a teoria da mídia alemã. Mesmo quando ele filma coisas banais, ele busca desvelar os conceitos que guiam as pessoas no dia a dia, conceitos, às vezes, triviais. Um filme como Leben, por exemplo, Farocki vai buscar as técnicas de segurança – outra divertida “nóia” alemã. Assim, ele documenta as aulas de trânsito para as crianças, as aulas de primeiro socorro, as sessões de terapias que sugerem ações, técnicas e reações para brigas no bairro, comportamentos de policiais, partos e situações similares. São situações perigosas que as técnicas de terapia comportamental – eis seus foco – amainam o choque da experiência para, justamente, deixa-las mais precárias. São esses conceitos, essas técnicas, o tema, por excelência, da obra de Farocki.

Desde 2005, com a série Serious Games, Farocki revela-se inquieto com o advento do digital. Ou melhor, pelos conceitos que o digital articula. Acho que nenhuma das suas obras lida com isso de maneira mais direta que Parallele, vídeo que mais gostei nessa visita a Galerie Barbara Weiss. Parece uma obra didática que passa, rapidamente, pela evolução dos gráficos, do espaço e da reprodução da natureza nos videogames dos anos oitenta até chegar nos programas mais tridimensionais e contemporâneos. Farocki quer comparar a imagem da película com essa outra, mais nova, ainda misteriosa. Parece voltar ao vento dos irmãos Lumières e acaba contrastando a mímesis do vento na película, que chega num compacto, com a reconstrução minuciosa, matemática, algorítmica, do vento no digital. Faz mesmo com a água, com as árvores. A natureza na película diverge totalmente da natureza quando codificada pela máquina de Turing.

Aos poucos, Farocki parece sugerir que o digital urde um nova materialidade, paralela, como um modelo modelador de outros modelos. O paralelo como título da obra vem, claro, da comparação da película e da sua “redenção do real”, como chamava Kracauer, com os parelelismos novos, sobrepostos ao real. Nesse modelo que cria paralelismos não há memória – base, talvez, da mimesis, mas tão somente imersões, sensações, projeções. Entramos no reino da superfície. Onde o superficial, matemática e minuciosamente construído, previsto e premeditado, transforma-se num substantivo imperioso. Nessa ontologia do digital, se plausível, os meus olhos, por demais analógicos, quedam certamente assustados. Creio que é esse susto que Farocki queria compartilhar.

Para quem quiser conhecer mais do cineasta sugiro essa boa introdução do Thomas Elsaesser, melhor historiador do cinema alemão que conheço. Recentemente ele organizou um livro bem com completo sobre Farocki, Seu artigo está na  Senses of Cinema.

Por fim, uma dica: não deixe de ver “Videogramas de uma revolução” que Farocki acompanha junto com  André Uiica, e pelo viés da TV oficial, a queda, o julgamento e a “filmagem” do fuzilamento de Nicolae Ceausecu. Esse filme não está naquela caixa de Dvd, mas você pode assisti-lo inteiro no youtube. Aqui vai a primeira parte. Enjoy it.

https://www.youtube.com/watch?v=AGdn_eABGyA

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Marina Abramovic: the artist is present

A performance como arte? A performance no museu? A performer como peça e obra de arte? Assim, entre perguntas e deslocamentos, chegamos a Marina Abromovic, dona do corpo, dos gestos e da voz que descortinou-se, nas últimas décadas, para tornar-se paradigma na performance. O filme  Marina Abramovic: the artist is present, de Mathew Akers e Jeff Dupre, acompanha essa obra homônima que esteve no MOMA, em Nova York, entre maio e junho de 2010.

Simples e notória, a tal performance de Abramovic consistiu em trocar um longo e profundo olhar com os visitantes e transeuntes, anônimos, que lá estavam. Duas cadeiras e – olhos nos olhos. Sem palavras. Sem conversas. Sem o paradigma da psicanálise. Apenas o corpo. A presença que convida a uma conexão nula de significados. A presença, radical, inerte, que transforma-se, paradoxalmente, em ausência. Marina estátua, mas presente, mas dissolvendo-se. Assim como John Cage que recusou-se a tocar por quatro minutos e trinta e três segundos, Marina entra em cena – para deixar de ser vista. Convida para uma troca etérea. No fascinante mistério, pétreo, que eclode quando um artista nada sabe do seu público, ou quando o público supõe conhecer a artista. Nada a trocar.

Daí, vislumbra-se o início da carreira dessa artista nascida na Sérvia em 1946. Sua série Rhythim, nos anos setenta, já encarava o corpo como uma mídia, prenúncio da body art. Ir ao limite do próprio corpo, sua exaustão, encontra-la, frente a frente, num estado de êxtase, sempre foi um desafio constante da mídia-corpo chamada Marina. Em seguida, seu trabalho com Ulay, um artista holandês, com quem Abramovic casou-se. Vida e arte misturam-se, de forma única, e o amor foi ora celebração, encanto e delicadeza – ora brutalidade e separação, como na bela e famosa performance Lovers – The great wall walk, na qual Marina e Ulay caminham pela muralha da China, encontram-se, despedem-se. Suas vidas, depois disso, buscavam outros rumos.

Embora seja um registro único e louvável da performance do MOMA e da história de Abramovic, o documentário tem sim uma forte pegada institucional. Não apenas por ser um filme encomendado pelo MOMA e ser uma biopic mais próxima da linguagem clássica. O estranho, num primeiro momento, é a própria vontade da Marina de colocar a performance no museu, de deixar de ser outsider, como ela mesma declara numa das suas entrevistas. Com sinceridade, o documentário nos insere em todo o aparato que está por detrás da “marca” Marina Abromovic: o consultor, o curador, o estagiário, os assistentes – uma gama de profissionais intermediários, sem quem, talvez, não teríamos visto o filme e nem escreveríamos, aqui, sobre performance.

No entanto, Abramovic provoca: porque a perfomance não poderia ter o mesmo status das demais artes? Por que estaria condenada a uma certa clandestinidade, ao gueto de uma cena alternativa? É nesse momento que o olhar de Marina ganha uma força ímpar. Quando se dispõe a trocar de forma direta com a platéia. Sem subterfúgios. Nessa hora, sua performance no MOMA parece uma tabula rasa. Como se Abromovic tivesse consciência da sua passagem, da sua finitude, ela luta por um legado. Ou simplesmente um lugar, institucional, que seja, no qual nosso tão infenso e maltratado corpo ainda pulse como a mídia – primieva e única – para todos os horizontes estéticos possíveis e imagináveis. Sutil, a aposta de Marina é mais do que urgente e ela passa além de todo o bizarro circo que a rodeia.

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Peter Handke, 70 anos.

Ontem, seis de dezembro, o escritor austríaco Peter Handke completou setenta anos. Obviamente a data passou desapercebida no Brasil, afinal Handke teve uma maior influência entre nós nos anos oitenta do que hoje. Mas aqui em Berlim, de onde escrevo, o aniversário desse poeta, dramaturgo e roteirista ganhou um certo frisson da mídia e da cena artística local. O  Das Berliner Ensemble, teatro mais tradicional que já foi dirigido por Brecht e Heiner Müller, presta uma homenagem com leituras das obras de Handke e a exibição de alguns filmes que ele dirigiu, documentários sobre ele e registro das peças Kaspar Insultando o público nos anos que estrearam. O curioso é constatar como Handke hoje é um escritor de establishment na cena literária alemã. Essa posição é completamente oposta daquela do seu início da carreira, quando questionava a literatura como instituição e a torre de marfim dos escritores. Hoje ele é um escritor premiado, citado e se a sua empáfia juvenil continua e persiste nas poucas entrevistas que dá ela soa, com o andar dos anos, um tanto fora de contexto. Basta passar os olhos nos principais jornais e você vai encontrar  nesses mesmos links reportagens sobre seus setenta anos no Süddeutsche ZeitungDie Welt,  e o Tageszeitung, para ficar nos sítios um tanto oficiais.

De forma mais discreta compartilho aqui  minha homenagem. Atualmente venho pesquisando sua obra com um estudo de caso interessante de trânsito e migrações entre o cinema, a literatura e o teatro. É o Handke roteirista – ou o dramaturgo das mídias – que me chama a atenção. O mesmo Handke dos anos sessenta e setenta percebendo que o escritor precisava interagir com as mídias para recuperar um projeto literário do século XIX. Um projeto, contudo, que não deveria mais ser estruturando unicamente na representação da realidade, herança maior da estética mimética, mas tentaria inscrever novas realidades a partir da escrita no seu sentido mais amplo, seja ela a mais tradicional, feita à mão, seja aquela mais técnica, que perpassa e atravessa mídias. Este é a ênfase desse breve retrato que transcrevo nestas linhas. Ele compõe a primeira de um trabalho acadêmico, que terminarei de pesquisar nos próximos meses aqui em Berlim.

Em tempo: de agora em diante tentarei autalizar o blog com certa frequência. Este post inicia uma série que batizei como Berlim sem fim (Unendliche Berlin), copiando sem dó nem vacilo o título de uma empolgante novela de Botho Strauss que está no livro A dedicatória. A ideia é  trocar minhas impressões sobre essa agitada cena artística. Espero que seja proveitoso.

*   *   *

Sem pátria – assim Peter Handke veio ao mundo. Filho de uma austríaca, cujos antepassados eram eslovenos, com um soldado alemão nazista, Handke nasceu num contexto de derrocada das grandes bandeiras nacionalistas. Veio, pois, em dezembro de 1942, no meio da segunda guerra mundial, em Griffen, na Áustria, uma cidade fronteiriça com a Eslovênia. Só conheceu seu pai biológico na maioridade, quando já tinha poucos vínculos com sua família. Entre 1944 e 1948, ele passou parte da sua infância numa casa simples, entre as ruínas de Berlim, no lado soviético, em Pankow, num cenário que remete aos destroços do filme Alemanha ano zero, de Roberto Rosellini. Alguns de seus relatos de infância nessa Berlim encontram-se em Bem-aventurada infelicidade, livro no qual conta a biografia da mãe, por seu ponto de vista, como um ímpeto estético e autobiográfico para tentar compreender seu suicídio, aos 51 anos de idade

Handke jovem

Peter Handke teve um início literário e mesmo um reconhecimento relativamente precoce. Die Hornissen, seu romance de estreia, é lançado em 1966, quando o escritor ainda sequer tinha completado 22 anos. Influenciado por Kafka, o romance apresenta um narrador cego, que tenta, por meio de fragmentos, juntar os cacos da sua vivência e, sobretudo, relatar o momento em que perdeu a visão. O romance não obteve um sucesso significativo, mas ficou marcado como um início de carreira. É curioso observar como, já nesse primeiro romance, encontra-se uma escassez de trama e um gesto narrativo que opta por fragmentos em vez de um arco dramático completo – motes e bandeiras que se formatarão como traços permanentes do estilo do escritor austríaco.

Súbita, a notoriedade de Handke foi permeada por polêmicas. Ainda em 1966, ele entrou no Gruppe 47, um coletivo de escritores alemães que buscava debater educação, literatura e democracia na Alemanha, logo após a derrota na guerra e os anos do regime nazista. Fundado justamente em 1947, o grupo durou exatas duas décadas e contou com a participação de escritores conhecidos como Paul Celan, Hans Magnus Hezensberg, Günter Grass, e Heinrich Böll, entre tantos outros. A presença de Handke, num encontro em Princenton, ocorreu no penúltimo ano do grupo, e sua postura foi extremamente crítica ao grupo, realçando o esgotamento de um projeto literário e realista, pautado em um esquema estético institucional estéril e que tirava a literatura das ruas e da realidade para enclausurá-la nas torres de marfim, caras aos escritores.

É teatral a principal obra que plasma e sedimenta essa provocação de Handke a seus conterrâneos. Ao lançar a peça Publikumsbeschimpfung (Insultando o público), entre 1965 e 1966, Handke quebra boa parte dos códigos institucionais existentes entre o palco, os atores e a plateia – um código que era temporariamente suspenso nos distanciamentos brechtianos, mas que acabou estilhaçado de vez pela dramaturgia e pelas experimentações feitas desde Beckett. A peça não possui história, enredo, drama ou mesmo diálogos. Ela foi interpretada como uma obra de vanguarda agudamente influenciada pelos jogos de linguagem de Wittgenstein. Publikumsbeschimpfung, assim como os poemas de Handke, apontavam para a necessidade de renovar e ultrapassar um projeto literário institucional e mimético que se encontrava esgarçado. Pode-se afirmar, assim, que boa parte do projeto literário de Handke dialogou com esse diagnóstico; ainda que de forma diversa, foi  uma preocupação recorrente ao longo dos seus livros.

Handke jovem 1

Sua obra na década de 1960 é um desdobramento dessas primeiras inquietações. Seja em poemas, ensaios, críticas cinematográficas, novos romances e peças de teatro, os anseios literários de Handke compartilham das suas críticas feitas no Gruppe 47; ou seja, tentavam alcançar algo além da “impotência descritiva”, como ele mesmo dizia, da prosa alemã dos anos 1940. Seus primeiros romances, aos poucos, eram comparados ao movimento do Nouvelle Roman, na França, que, sobretudo, pela figura de Allain Robbe-Grillet, acabaram por traçar parcerias cinematográficas com Allain Resnais. No entanto, em contraste, Handke apontava novidades estilísticas e temáticas que acabaram por diferenciá-lo dessa cena francesa.

Um dos primeiros poemas publicados por Peter Handke chama-se Die neuen Erfahrung (As novas experiências) e enfatiza alguns instantes epifânicos, por exemplo, ao ver uma ópera de Wagner e pagar um estacionamento automático inserindo uma simples moeda nas máquinas. Momentos cotidianos e banais, mas que, permeados por máquinas, possibilitam novos vínculos sensoriais entre o homem contemporâneo, suas emoções, suas experiências, os objetos industriais e as paisagens. É interessante reparar que a própria estrutura desse poema já anuncia algumas dinâmicas cinematográficas: flashbacks, forwards, imagens instantâneas, únicas e fugazes, que emergem enquanto o poeta contempla a paisagem num Transeuropaexpress. Aos poucos, Handke apontava para a busca por uma nova sensibilidade e subjetividade.

Handke Jovem 2

Foi a produção dos anos 1970 que apresentou essa guinada de forma mais vigorosa. Livros como Uma breve carta para um longo adeus e Bem-aventurada infelicidade, ambos de 1972, eram marcados por certo subjetivismo narcisista ainda raro no panorama literário da época. Esses dois romances tiveram uma ampla circulação e tornaram Peter Handke um escritor mais conhecido e respeitado, ganhando uma notoriedade que ia além de seu epíteto de enfant terrible. É nesse contexto que, em 1973, ele obtém o prêmio Georg Büchner – com certeza, o principal reconhecimento literário para escritores de língua alemã. Ambos os romances são marcados por personagens em movimentos, à deriva, um tanto perdidos e soltos, entre cidades, viajando, flertando com mídias, imagens, jornais, programas de televisão, filmes, numa espécie de romance de formação às avessas. É nesse instante que se começa a perceber um escritor inquieto com o mundo de imagens que o cerca, e este registro marca-se como o primeiro momento da sua carreira em que ele flerta com uma estética das paisagens.

Handke é um escritor profícuo e habituou-se a lançar, desde 1966, pelo menos um livro por ano. Em meio a tanta produção, pode-se, com certa cautela, perceber uma terceira etapa na sua obra, que é bem representada por uma tetralogia, constituída pelas novelas Langsame Heimkehr (Slow homecoming) e Kindergeschichte (História da criança), o ensaio Die Lehre der Saint-Victoire e a peça Über die Dorfer (Sobre as aldeias). Estudiosos da obra de Handke, como Christoph Parry, percebem nesses livros uma preponderância de paisagens fortemente influenciadas pela descoberta de Paul Cézanne. Inquietante, esse encontro com o pintor francês é minuciosamente narrado no ensaio Die Lehre der Saint-Victoire, que podemos traduzir como O mestre de Saint-Victoire, onde Handke, olhando horas a fio algumas pinturas de Cézanne, filia-se a uma escrita da paisagem, na qual o conceito de Ding-Bild-Schirft (coisa-imagem-escrita), que ele mesmo formulou, torna-se prevalecente.

Handke dorme

O  interessante dessa classificação temporal da obra de Handke é que ela permite vislumbrar um escritor em três fases distintas. Na primeira, têm-se jogos de linguagem como uma forma predominante, uma variação lógica, gramatical, seca, cujo intuito era ultrapassar um projeto mimético; na segunda fase, uma preocupação de personagens que o aproximam, com certa nuance, aos romances de formação, embora, obviamente, cadenciados por uma nova sensibilidade, uma aposta na subjetividade e na narrativa eivada, pois, por um forte mundo midiático; e, por último, vê-se a emergência dessa estética da paisagem que marcou a obra de Handke dos anos 1980 aos nossos dias. Ao longo dos próximos capítulos, será possível ver como cada uma dessas fases da obra de Handke lida de forma diferente com a imagem e estabelece um diálogo peculiar entre a literatura, o teatro e a ekphrasis. Em alguma medida, essas fases também ecoam de forma distinta no cinema de Wim Wenders.

No entanto, tais fases correspondem à carreira literária de Handke. Deve-se enfatizar, paralelamente, que Handke também ensaiou uma aproximação com outras mídias, como o rádio, a televisão e o cinema. Já na década de 1960, ele escreveu peças radiofônicas, como Wind und Meer, linguagem pela qual também passaram Brecht e Beckett. Em 1971, Handke é convidado a escrever o roteiro e dirigir um filme para televisão que ganhou o título de Chronik der laufenden Ereignisse (Chronicle of On-Going Events). O filme tem atuação de Rüdiger Vogler, ator que se destacou nos filmes  do cinema alemão e na obra de Wenders e, não por acaso, sempre atuou nas peças do escritor e dramaturgo austríaco.

Handke aceitou o desafio de dirigir esse filme para lidar com a televisão de uma forma diferente da crítica cultural vigente para essa nova mídia. Assim, acabou realizando uma livre adaptação do livro The glass key, de Dashiel Hammet. O roteiro foi dividido em 45 cenas fragmentárias, elaboradas de forma pouco convencional, e contava a história de dois jovens que acabaram de chegar numa cidade grande em busca da liberdade. Suas esperanças, entretanto, acabam carcomidas por uma natureza opressiva e corrupta.

Há, entre este e o segundo filme de Handke, um hiato de seis anos. Intervalo este que corresponde aos dois roteiros que ele assina para a direção de Wenders. Os outros três filmes dirigidos por Handke são adaptações de romances que ele mesmo escreveu. A mulher canhota, em 1977; Das Mal des Todes, em 1985; e, depois da reunificação alemã, A ausência, em 1993. Pesquisando a fortuna crítica sobre a recepção desses filmes, constata-se que eles obtiveram pouquíssima repercussão na cena cinematográfica da sua época. Passaram quase despercebidos.

Numa leitura um tanto estreita, é possível frisar que o projeto de Handke como diretor é permeado pelo fracasso. Como explicar ou compreender esse fracasso? Haveria, talvez, uma potência negativa nesse gesto de um escritor sair de sua torre de marfim, abandonar o conforto e a segurança que já tinha em datilografar numa Remington e aventurar-se a escrever com a câmera.São justamente esses gestos e essa disposição ao fracasso que chamam a atenção na biografia de Handke e que, indiretamente, repercute na sua busca pela sétima arte. De um lado, seus anseios de diretor revelam a busca por uma prática que visava justamente ir além de um projeto literário e de um papel institucional do escritor, que Handke percebia e denunciava como ultrapassado. Escrever com e para as novas mídias seria, nessa visão, uma forma de renovar a escrita, de deixá-la com uma roupagem de fato contemporânea.

A ausência

Há, por outro lado, um projeto geracional do qual Handke, ainda que tacitamente, parece compartilhar. Se olharmos com certo cuidado as intenções de movimentos como a nouvelle vague, o cinema novo brasileiro e mesmo o cinema novo alemão, perceberemos que aqueles jovens eram tanto cineastas quanto escritores. Não é por acaso que artistas como Godard, Truffaut, Resnais, Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrate, Alexander Kluge, Wenders e Fassbinder também publicaram livros, ensaios, críticas, peças de teatro e roteiros. Trata-se de uma geração que possui um projeto e uma formação que lida diretamente com literatura, mas também, quer seja como intelectuais ou como artistas, via no cinema a arte que oferecia o melhor diálogo com seu tempo. É nesse instigante contexto geracional que se deve reter a trajetória de Handke, seu fracasso como cineasta e seu trabalho, prenhe de conflitos e sublimações, entre a palavra e a imagem.

Nessa trajetória de Handke, traçada até aqui, omiti um encontro importante. Em 1960, um jovem chamado Wim Wenders foi ver uma peça em cartaz, de autoria do também quase imberbe dramaturgo austríaco. Era uma das Sprechestücke, as peças faladas, e chamava-se Selbstbezichtigung (Autoacusação). O jovem gostou do que viu e resolveu conversar com o escritor. Dali nasceu uma amizade e um projeto artístico comum que, de forma diversa, perdurou durante décadas. Poucos meses após o encontro, Wenders começou seu curso de cinema em Munique. Nesse período, entre 1967 e 1973, o já jovem cineasta voltou a encontrar Handke em cidades como Berlin, Paris e Kronberg.

Como estudante, Wenders sempre foi um entusiasmado defensor do poder epifânico das imagens. Em um de seus escritos juvenis, ele citava o teórico Béla Balázs para ressaltar como a pintura e a fotografia recusavam a existência das coisas e como havia uma força mágica em tal característica da imagem. É nessa aposta estética que ele realiza seus primeiros curtas-metragens, como Silver City Revisited, um filme de 1969, de 25 min, feito para a faculdade. Melancólico, sem personagens, o filme alterna fotos com planos gerais, rostos com paisagens, temas estéticos que se tornariam caros ao estilo de Wenders.

Já em 1969, consolida-se a parceria cinematográfica entre Handke e Wenders. No filme Três LPs americanos, eles conversam, em off enquanto vemos cenas urbanas sobre Munique. Falam de músicas e, assim, as paisagens sonoras mesclam-se às paisagens visuais. Nascia ali uma parceria que se consolidava em filmes e pulsava também de forma independente na obra de cada um. A essa época, no final dos anos 1960, Handke já era relativamente reconhecido, enquanto o jovem cineasta aspirava por um início de carreira.

Três LPs

Wenders e Handke sempre produziram suas obras com mútua influência, mas também com uma respeitosa independência. Em 1972, um ano após o lançamento do romance O medo do goleiro diante do pênalti, a parceria se transforma na adaptação desse romance para a tela. De certa forma, o filme respeita boa parte das intenções literárias e visuais contidas no livro. Narra-se a trajetória de Joseph Bloch, um ex-jogador de futebol que, após ser demitido, vaga, a esmo pela cidade até se envolver num assassinato com uma bilheteira de um cinema. E mesmo com um crime, a história não busca um clímax ou uma resolução. Ao contrário, o livro realça um protagonista descentrado: sem objetivos, cadenciado por sensações alheias. No entanto, Joseph Bloch foi um goleiro e acostumou-se a olhar menos para a bola do que o movimento dos jogadores. O que Handke parece chamar a atenção é como, às vezes, em volta da narrativa, há coisas – tais como, numa partida, olhar para o goleiro – mais interessantes do que o próprio plot.

Medo do goleiro

A ênfase na paisagem sonora é um dos pontos mais inovadores da adaptação cinematográfica de Wenders. Nessa ausência de história, Wenders acaba por combinar sua epifania visual com as sensações latentes de uma trama que não quer explodir como história ou num arco dramático completo. A história, assim, mínima, quase sem importância, coliga-se à imagem. Desde o início de suas carreiras, tanto Wenders como Handke não buscavam uma imagem cinematográfica que ilustrasse ou fosse conduzida por uma história. Esta, quando pulsa, pulsa dentro e pela imagem.

Movimento em falso

O segundo encontro fílmico, de um longa-metragem, entre o escritor e o cineasta consolida-se em Movimento em falso, uma livre adaptação da obra Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister, escrita por Johann Wolfgang Goethe em 1795. Vastamente conhecido e difundido, esse romance é considerado por muitos críticos literários como um dos prenúncios do moderno Bildungsroman, ou romance de formação, cujo “conteúdo é a educação dos homens para a compreensão prática da realidade” (LUKÁCS, p. 592, 2006). Peter Handke, por iniciativa própria, escreveu um roteiro sozinho, sem passar por uma escrita literária prévia, e escolheu mudar a “cronotopia” da obra e passar o enredo do século XVIII ao seu momento contemporâneo; ou seja, os anos 1970.

Mais do que isso, pesquisou e, a seu modo, transmitiu uma roupagem moderna ao filme. Nessas mediações, o sonho de realização pessoal de Wilhelm não é mais se tornar ator ou um homem de teatro, como primeiro nos narrou Goethe, mas se transformar em um escritor peculiar. Wilhelm tampouco faz uma trajetória pela Alemanha a cavalo ou de carruagem, em vez disso, no filme, anda de bicicleta, trem, carro e, deambulante, também passeia a pé entre paisagens ermas e figuras urbanas industriais. Extremamente interessante, esse filme revela um trânsito intermidiático entre Bildungsroman e road movies, entre a escrita e o cinema, entre as paisagens e o teatro de Goethe – rastros intermidiáticos que são compreendidos e potencializados pelas filmagens de Wenders.

Wender Asas

A terceira, última e mais conhecida parceria entre Handke e Wenders consolida-se no filme Die Himmel über Berlin, que foi traduzida como Asas do desejo, de 1987. O interessante dessa colaboração é como ela não foi permeada por uma obra literária. Ela já ocorreu pensada para a tela, como filme, num formato próximo ao que se considera como um roteiro original. Curiosamente, no final da década de 1980, Handke já estava imerso nessa estética das paisagens, e o que se vê e ouve em Asas do desejo são, sobretudo, paisagens urbanas, subidas e descidas dos anjos, que flutuam por uma Berlim às vésperas da queda do muro. Sem dúvida, é o filme mais poético da dupla e, como se verá, está prenhe de ekphrasis, jogos únicos entre palavras e imagens, revelando uma rara simbiose e intimidade estética entre um escritor, um roteirista e um cineasta: um resultado intermidiático ímpar, que se duplica quando feito para o cinema.

Handke e Wenders

Por volta dos anos 1990, por exemplo, Wim Wenders chegou a anunciar a filmagem de Slow Homecoming, adaptação essa que, como se sabe, não saiu do papel. Também, em uma pesquisa mais cuidadosa, seria possível descobrir vontades de diálogos que foram caladas, que não frutificaram. As conversas entre roteiristas e diretores guardam certa aura espectral. Apenas fagulhas, momentos ínfimos de papos infinitos, migram do papel para a tela. Muita coisa fica no caminho, tais como os rascunhos de um poema minimalista, como o ato de catar feijão – que João Cabral de Mello Neto elogiava; um gesto minucioso que recusa palavras excessivas em busca do vocábulo exato.

No entanto, essa força da recusa, do corte, do calado e do não dito – daquilo tudo que não vingou e não foi filmado – pulsa, de forma distinta, nos fotogramas esculpidos, a várias mãos, reproduzidos, sempre na tela. Esta é parte da força estética e histórica de pensar o cinema como uma obra impura, prenhe de gestos e afetos diversos, que se compõe um pouco no script, um pouco ao acaso, um tanto na cena, entre rastros e movimentos, impressos, que passam entre câmeras, lentes, superfícies planas e retinas.

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Cine-filhos de Paulo Emílio

O artigo abaixo foi publicado no livro “Paulo Emílio Salles Gomes: o homem que amava o cinema e nós que o amávamos tanto” organizado por Maria do Rosário Caetano. Foi lançado recentemente na Mostra SP e no Festival de Brasília. O livro está bem legal com fotos, depoimentos, artigos e entrevistas. Tem colaborações de Carlos Reichenbach, Antonio Candido, Ismail Xavier, Matéus Araújo, Lygia Fagundes Telles, que foi casada com Paulo Emílio, entre tantos outros. Escrevi algo mais pessoal e enfatizo como minha descoberta da trajetória e da obra de Paulo Emílio, ali, nos meus anos uspianos, me inspiraram a seguir a trilha da crítica, da política e dos estudos de cinema.  Boa leitura.

*   *   *

Toda febre cinéfila gera um convite à filiação. Os fãs escolhem atores para imitar e homenagear. Os que vivem da sétima arte, filiam-se a gêneros, manifestos, diretores. Peculiar, a cinefilia que leva à crítica não costumaria fugir à regra. No entanto, quem realmente guia-se por um crítico quando escreve sobre um filme?

No Brasil, uma filiação crítica começaria no nome de Paulo Emílio Salles Gomes. Sou contemporâneo de uma geração que nunca usou uma Remington ou uma Olivetti para escrever sequer uma linha sobre um filme. Quando começamos a amar o cinema, Paulo Emílio já tinha partido há mais de uma década. Contudo, como todo leitor, como todo cinéfilo, criamos nossas formas íntimas e místicas de ouvir, ver e conversar com os mortos que admiramos.

Ainda me lembro das minhas idas ao Cine Brasília, das palmas e vaias nas noites de Festival – e de uma foto P&B de Paulo Emílio, sorridente, sentado naquelas mesmas poltronas marrons. Depois, já na São Paulo da minha graduação, tive aula com professores que foram alunos e aprendizes de Paulo Emílio. E, assim, como a transmissão de uma narrativa tradicional passada oralmente conheci suas ideias e passei a imaginar sua retórica, sua verve política. Outra sinapse de pós-memória criou-se quando fui estagiário da Cinemateca Brasileira, onde Paulo Emílio ronda como um espectro shakesperiano. Lá, pude ver alguns dos seus livros na estante. Eventualmente, manuseá-los, lê-los. Com olhos curiosos, conheci autores que ele devorava com entusiasmo e entre as mesmas páginas brota a inquietação de traçar caminhos similares.

Não é em vão que compartilho parte da minha trajetória. Homem de cinema, Paulo Emílio foi também impelido ao tema e à índole da formação. Formação: uma palavra-síntese da sua biografia e obra – e um tema caro à própria geração do jovem Paulo Emílio. Não por acaso, essa mesma palavra aparece repetitivamente nas principais obras de Antonio Candido, Décio de Almeida Prado e Lourival Gomes Machado, os críticos de literatura, teatro e artes visuais da revista Clima dos anos trinta. Todo o trabalho dessa geração trouxe períodos e artistas brasileiros para a cena da crítica e dos estudos acadêmicos influenciados pelos modernistas de 1922.

Esse horizonte modernista, que possivelmente acabou por trazer Paulo Emílio a Brasília, induziu-o à formação de um aparato institucional para o cinema brasileiro. Se o compararmos com a cena francesa, Paulo Emílio seria a inusitada fusão de Bazin, Langlois e Malraux. De um lado, um intelectual que elaborou os pressupostos conceituais da crítica da geração do cinema novo. Paralelamente, foi o fundador da Cinemateca Brasileira e esse singelo gesto possibilitou a construção de uma historiografia mínima permitindo os alicerces da nossa memória audiovisual. Havia a preocupação de criar condições para institucionalizar diretrizes de uma política cultural atenta a preceitos modernos.

Sem sua persistência o cinema que hoje chamamos de brasileiro dificilmente teria saído dos seus ciclos anódinos e isolados. Na prática, a formação de Paulo Emílio foi traduzida pelo seu empenho em criar os primeiros cursos de cinema, na USP e na UnB, e pelo profícuo espaço de debate que culminou no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Hoje, o Brasil possui cerca de trinta cursos graduação e pós-graduação em audiovisual e centenas de festivais.

Na sua obra, a formação traça uma linha transversal comum aos seus principais livros. Paulo Emílio não é apenas o melhor biógrafo de Jean Vigo, mas escreveu uma vibrante narrativa sobre a construção da cena anarquista francesa do início do século XX. Por isso retrata Miguel Almereyda, pai de Vigo, e percebe uma pulsão poética e política que transmite-se ao filho e impregna-se nas celulóides filmadas pelo jovem cineasta. Ao retornar ao Brasil, Paulo Emílio escolhe o jovem Humberto Mauro, nos seus anos cinéfilos em Cataguazes, quando desconhecido, fugindo do seu curso de engenharia para brincar de cinema com a sua Pathé de  9,5mm. Lúdicos e errantes, os anos de formação foram a fonte de inspiração estilística de Paulo Emílio.

Da mesma maneira como as formações não são retilíneas nem coerentes, é preciso reconhecer que filiação não rima com repetição. Pelo contrário, admitir a influência de um crítico passa, como uma forma de homenagem, por criticá-lo. Digo isso pois a agenda e o projeto dos últimos anos do cinema, da crítica e dos estudos feitos no Brasil dialogam de uma forma interessante com o legado de Paulo Emílio.

Desde o início da retomada, por volta de 1995, o cinema brasileiro vem contrariando uma das principais teses estilísticas e econômicas de Paulo Emílio. Refiro-me a “incompetência criativa” de copiar os formatos hegemônicos e hollywoodianos de narrativa e distribuição de filmes. É claro que há nuances nessa resposta, mas desde filmes como Central do Brasil e Cidade de Deus busca-se não apenas um diálogo com o público e a aposta de um cinema industrial mas uma forma de interagir sem medo com a tradição dos gêneros hollywodianos. Copia-se, sim, bem, e com certo orgulho.

A outra face desse diálogo teria um desdobramento mais pós-colonial. A geração de Paulo Emílio significou um conjunto de indivíduos sintonizados em construir uma nação. Hoje, somos uma nação – de cinéfilos – com uma crise dócil frente essa mesma idéia de nação, e composta por indivíduos afoitos por singularidade. Não se guia mais pelo tema de um cinema industrial, mas por formatos leves de produção, que buscam um diálogo com públicos de nicho. Tampouco incomoda um cinema “subdesenvolvido”, mas sim uma estética pautada em valores eurocêntricos. Não nos preocupamos muito com a possibilidade de criar uma imagem nacional, ou representarmos um povo brasileiro nas telas, mas busca-se uma poética dos afetos entre indivíduos que traçam uma rampa comum entre quem está na tela e quem está na poltrona.

São outros tempos, outras inquietações, outras palavras, distintas, que nos induzem a uma diferença prática e teórica frente aos que nos antecederam. O jogo da crítica é um jogo entre imagens, palavras e conceitos. Um jogo em slow motion, talvez, que exige uma maturação bem diferente da afobação dos lançamentos semanais. Sem Paulo Emílio, esse jogo, aqui, nesse cerrado adusto onde escrevo, talvez tivesse outra fisionomia mas certamente não seria tão empolgante

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Pina, de Wim Wenders

Os documentários de Wim Wenders possuem três características bem claras que diferenciam-se das suas ficções. A primeira marca seria a amizade, ou um gesto de admiração por aqueles que retrata. Os docs mais célebres, nesse recorte, são  Um filme para Nick, no qual acompanhamos o lento definhar rumo à morte de Nicholas Ray e Tokyo –Ga, que homenageia Yasujiro Ozu. Tanto Ray quanto Ozu são personagens que inspiram Wenders, e com quem ele tenta, direta ou indiretamente, conversar. Uma segunda tendência em Wenders é a reflexão sobre artistas e a arte – este, sim, seria o tema dos seus Docs. Até mesmo em Quarto 666 e Bunea Vista Social Club o que vemos são cineastas e músicos não apenas falando sobre a sua profissão mas compartilhando inquietudes, dilemas éticos caros para quem vive de criar, seus fantasmas, seus demônios. Lendária é a declaração de Michelangelo Antonioni em Quarto 666 confabulando sobre o futuro do cinema – e são impasses estéticos similares que Wenders suscita nos artesãos que entrevista. A terceira marca seria o ensaio – e esse tom mais fluido e subjetivo é certamente o que melhor caracteriza a aura estética dos Docs de Wenders. Mais do que uma tese, uma homenagem comum ou uma simples observação, Wenders busca criar caminhos tortuosos, instantes de troca e diálogos, nos quais se coloca, como autor e artista, lado a lado de quem filma e de quem assiste. Ele procura o sujeito que retrata a partir da câmera – esse estilo é delicado, quase imperceptível. O ensaio torna-se um gesto estético, a sua voz nos conduz, entre as mais variadas digressões, lidando com uma tradição estilística mais próxima de Montaigne do que de Adorno. É como ensaio, portanto, que os documentários de Wenders transformam-se em obra.

Pina (2011), seu último trabalho, embaralha todas essas três características e sugere uma nova formatação, ora mais interessante, ora um tanto decepcionante. É óbvio que não devemos julgar esse filme de Wenders considerando apenas as marcas de um estilo anterior, nem podemos restringir um diretor encouraçado-o com suas experimentações estéticas prévias. Instigante é o artista que lança-se a novos desafios, sabe reinventar-se, desrespeitar-se e ainda provoca seus espectadores e críticos. Visto assim, Pina revela somente ousadias. Afinal, filma-se a dança – arte veloz para a câmera, coreografias complexas e tenta-se prescindir de narrativas e apresentações mais convencionais de Pina Bausch. Wenders opta por inserir o espectador no meio de um pout-pourri de peças famosas de Pina e do seu grupo de Wüppertall. Com pouquíssimas falas, o que revela uma acertada aposta em transmitir a dança pela dança.

Mesmo que o documentário tenha sido feito depois da morte de Pina, quem nos deixou em 2009, Wenders chama os dançarinos como parceiros e persiste em criar novas situações cênicas e coreográficas por meio de diálogos com os dançarinos. Dessa forma, o filme deixa de ser apenas um registro de espetáculos e reivindica para si momentos de forte atração visual e apelo sinestésico. Monumental e espetacular, portanto, o estilo do filme prefere sensações em três dimensões do que ensaiar, errar e improvisar junto com Pina e seus dançarinos. Basta lembrar dos números marcantes do Café Muller (cujo original você pode ver na íntegra AQUI), das cenas em Wüppertal, cidade que acolheu Pina, ou das seqüências com água. Todas sugerem sensações puras, relâmpagos dramáticos, e revelam um documentário que guia-se pelo estético. Até aí não vejo problema algum e considero que todas essas decisões de Wenders são acertadas. Elas fazem de Pina um filme que deve ser visto com entusiasmo, para dançarmos com os olhos.

O meu ligeiro incômodo, bem pentelho e crítico, confesso, está numa subliminar canonização da artista Pina Bausch. Sua recente morte inocula uma compreensível melancolia, uma sensação de luto ainda não trabalhada e uma homenagem verticalizada. No filme, os gestos coreográficos de Pina são sobrevalorizados pelos dançarinos, como se tudo que ela decidisse fosse sublime, perfeito e irretocável. Os “herdeiros” parecem que não perderam apenas uma coreógrafa, mas uma líder, uma heroína. Nesse sentido, o documentário se aproxima mais de um estilo clássico (meio piegas) e norte-americano, do que propriamente uma tradição que tenta valorizar a obra – suas imperfeições, porosas, humanas, tal como num ensaio – frente a persona impecável do artista. Não por acaso, prefiro esse crepúsculo dos ídolos que Nietzsche nos chamou a atenção na sua polêmica contra Wagner. Se houver um Deus, que ele dance – e conosco.

Talvez Merce Cunningham, outro artista importante para a dança moderna, nos lance uma pista. Como budista, ele se preocupou em esvaziar qualquer legado que exaltasse sua obra (você pode ler uma boa reportagem sobre Cunningham AQUI). Pediu que, após sua morte, os dançarinos do seu grupo fechassem a instituição; que buscassem outros métodos e que só fizessem mais algumas apresentações. Era preciso colocar um ponto final. Seu argumento? A dança é a arte do instante, do gesto efêmero – ela não pode e nem deve ser canonizada. Essa insistência ocidental de uma misteriosa duração eterna seria contra a ontologia da dança. Não sou budista e creio que essa atitude seja tão radical quanto coerente. No entanto, acho que Cunningham nos deixa um exemplo interessante, sobretudo numa tradição de canonizar os artistas que nós – e muitos documentaristas – compartilhamos e alimentamos.

A arte do retrato deveria encarar com mais tranquilidade nossa inevitável finitude. Uma vez ouvi, ou li, sei lá, alguém que disse: “é preciso aprender a morrer”. Pois, será preciso. Ainda que o cinema seja a arte da persistência da retina contra o tempo que perece `a nossa frente. Ainda que Pina mereça todas essas homenagens feitas por Wenders, e que sua obra deva sim ser difundida por todos. Ainda assim, devemos nos questionar se não temos o ímpeto de substituir santos por artistas e se, algumas vezes, não naturalizamos uma estranha e perigosa devoção.

Às vezes, prefiro o gesto iconoclasta. Ou aquele outro, mais sutil, que desdenha efemérides. Certamente, a melhor homenagem – a qualquer indivíduo – é a conversa, a troca, a crítica, a observação, a escuta. Gestos que dissipam-se quando estamos embevecidos por um afã de canonização.

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