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o avesso do avesso do avesso do avesso

Determinada, Medeia leva seus dois filhos ao vale. Lá, sem muitos rodeios, enforca o mais velho. Ao ver a agonia do seu irmão, o caçula, cúmplice da cena e solidário `a mãe, se entrega, se oferece aos braços de Medeia para também ser enforcado. Foi assim que Lars Von Trier filmou, em 1988, a forte cena da peça de Eurípedes.

De Medeia ele trouxe para as telas a essência da tragédia: a hybris, os limites e os impasses dos atos humanos. A vingança da feiticeira é amoral, assim como o é o desespero da personagem feminina de Anticristo, interpretada por Charlotte Gainsburg. Ambas mulheres – as duas personagens – encaram os dilemas do sacrifício feminino. Elas ferem a complementaridade umbilical entre si e os filhos. Elas negam, veementemente, o que o senso comum conota como feminilidade.

O extirpar do clitóris com as próprias mãos, a negação do ditame de Éden – “crescei-vos e multiplicai-vos” como fuga ao dito pecado capital – talvez sejam essas as imagens e as sensações escolhidas pelo diretor dinamarquês para conotar o avesso total, a antípoda dos paradigmas cristãos. Uma poética para onde reina o caos.

Ao contrário do que foi mundialmente julgado, penso que esse filme de Lars Von Trier é uma continuidade coerente com a sua obra. O ideólogo do Dogma 95 é um cineasta que se filia `a busca por uma autêntica poética da violência. Uma tradição que instila estranhamento com transcendência, e na qual encontramos Eric Von Stroheim, Ingmar Bergman, Carl Dreyer, Luis Buñel, Andrei Tarkovsky e tantos outros diretores. Mais do que cineastas,  esses são artistas que buscam uma transcendência, uma sublimação, um jogo estético que parte da fé para retratar o seu teor negativo.

O interessante é que Von Trier tornou-se mundialmente famoso por inserir sua dose de violência entre gêneros cinematográficos bem conhecidos do público. Principalmente o melodrama, marca distintiva da sua trilogia “Golden Heart”, que abarca  Breaking the Waves, Os Idiotas e Dançando no escuro. O que vemos nesses filmes é mais do que uma autópsia de personagens femininas. Von Trier usa o melodrama como uma pista falsa, um gancho para manipular a atenção e a emoção do espectador. Um pouco do cinismo pós-moderno. Feliz ou infelizmente, um sintoma do cinema dos nossos dias.

Em Anticristo ele nega esse recurso. E segue cru na sua busca pelo estranhamento. Ao se aproximar do gênero do terror, Von Trier o encarna com doses cavalares de niilismo. Em outras palavras, ele tira o chão e as referências do espectador. Não há como condenar os personagens, como ele fez em Dogville. Tampouco há brechas para absolvê-los. Pelo avesso, Von Trier nos mostra o avesso que, todo dia, teimosamente, tentamos esconder de nós mesmos.

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