Nunca curti muito essa onda de lista de melhores filmes, ao final do ano, e cá estou me contradizendo – postando uma. Listas são pessoais, com poucos ruídos, sem polêmicas e, para quem as acompanha, como eu (e você), percebe-se que são todas bem similares. Minha listinha abaixo não fugirá da regra. Não terá surpresas e não se envergonha disso. Talvez difira por ter onze filmes ao invés de dez. Grandes coisas: só coloquei onze obras porque não consegui reduzir o número. Mas, acredite-me, esses foram os filmes que, após as luzes acesas, depois de sair da templo-cinema, eu sentia-me diferente. São filmes “literários”, quem sabe, que, pelo êxtase, nos proporcionam uma quebra sensível do nosso dia a dia. Filmes que me levam a escrever e a querer compartilha-los, discuti-los, revê-los.
Não estranhe ao ver cinco filmes brasileiros. Não costumo fazer essa distinção de nacionalidades no meu estranho cânone. São filmes que considero bons. E ponto. Aliás, penso que o maior problema conceitual de uma crítica do cinema brasileiro é considerar essas obras antes brasileiras do que filmes. Talvez seja uma ressaca de uma certa reserva de mercado vinda de tempos de escassez de produção e uma luta dos anos setenta aguçada pelo fosso que foi o fim do embrafilme nos idos noventa. Enfim, isso já faz algum tempo e creio que a pauta dos últimos filmes – da crítica – e de uma nova geração mais recente mudou, e bastante. Penso que a melhor maneira de criticar um filme “brasileiro” é contrastá-lo com o cenário internacional com os diversos nichos com os quais cada obra, hoje, dialoga. O epíteto de “cinema brasileiro” tende a homogeneizar obras, diretores e estilos muito diferentes. Mas isso é outro assunto… .
Há, na lista, poucos documentários. Só destaquei o filme de Adirley, que quase não é um Doc, e o do Cao Guimarães. Dos Docs que vi esse ano apenas esses dois me tiraram o fôlego. Películas que sequer entraram em cartaz… .
Acho que me alonguei demais numa explicação – e esses argumentos costumam ser mais enfadonhos que a própria lista.
Moonrise Kingdom, de Wes Anderson
Anderson me levou de novo à magia da adolescência nessa pequena obra-prima. Um filme leve, com humor, delicadeza, e envolto por uma preciosa paleta de cores. Difícil não sair seduzido por Suzy e Sam e suas aventuras impetuosas. Wes Anderson faz tudo com tanta precisão que me senti vendo um filme da sessão da tarde quando, sei lá, ainda estava na primeira infância. Não é qualquer diretor que consegue encantar e dizer que está te encantando com um mão tão sutil e firme. Além disso, Anderson também destila uma ironia requintada a sociedade americana. Como se os escoteiros e aquela ilha fosse um microcosmo de insanos. Uma delícia.
Otto, de Cao Guimarães
Nem de longe é melhor filme de Cao Guimarães. Prefiro Ex-Isto, filme de 2011 que quase ninguém comentou. No entanto, acho que Otto fecha um ciclo de uma guinada subjetiva no cinema contemporâneo. Ao invés de uma autobiografia calcada no passado e no trauma, Cao filma a espera, os instantes em que aguarda-se o filho por vir, as boas-vindas de uma nova vida. Esse tom é bem diferente. É claro que o filme tem uma mão um tanto pesada no poético – mas quando acerta, é como as fagulhas de um Godard, vale uma obra inteira. Lembro que levei uma turma de alunos – boa parte calouros – no Festival de Brasília para ver o filme. Era sua estréia e nenhum dos alunos sequer sabia quem era Cao. A metade me odiou. Mas a outra metade ficou atônita, em êxtase. Ninguém pairou indiferente. Para mim, essa ambigüidade de reações é a maior força da experiência do cinema. E, tenho certeza, nenhuma estatística consegue medi-la.
Tabu, de Miguel Gomes
Sei que não foi lançado no Brasil, mas Tabu não pode deixar de entrar numa lista dessas. É um filme de uma elegância rara, que consegue elaborar um sofisticado contraponto entre nostalgia e ironia. Para mim, ele consegue realizar o projeto, fracassado de O artista; ou seja, Tabu traz uma aura nostálgica precisa evitando pieguices ilusórias. Muitas vezes ele duvida da sua própria nostalgia, pois revela o lado ridículo de um projeto colonial. Noutras vezes, essa mesma nostalgia – da juventude e do amor – nos convence e compartilhamos sensações ambivalentes. O filme é composto por hiatos, por fossos, cheio de portas de entrada para o espectador que, discretamente, envolve-se e ele mesmo ativa toda a maquinaria ficcional.
A cidade é uma só?, de Adiley Queirós
Um filme necessário. Sou de Brasília e sempre morei no plano piloto. Sinto na pele essa diferença do ponto de vista da Ceilândia, que Adirley traz para o filme – e para todo o seu posicionamento político. Ela é fundamental para embotar uma certa cegueira presente no discurso, bem oficial, que enaltece a cidade modernista. Ou, por outro lado, por uma crítica superficial para aqueles funcionários públicos muito bem pagos que, comodamente, reclamam do transporte público. Adirley mostra o avesso do avesso do avesso desse projeto modernista, mas de uma maneira inteligente, chutando o balde para a ficção, para uma utopia que nasce de uma dialética negativa e, assim, foge de uma estética do ressentimento. Lembrei da ousadia ficcional de um Tarantino que fabula um final catártico e sádico contra os nazistas, em Inglrious Bastards. A ficção é esse espaço do possível. Mais político ainda, o cinema de Adirley busca instaurar a diferença. A cidade é uma só? tem altos e baixos, mas sua pegada é coisa rara.
Holy Motors, de Leos Carax.
O último filme de Leos Carax podia ser um manifesto tardio sobre a força estética de um cinema extemporâneo. Como cinéfilo, seguidor dessa clássica e desbotada cinefilia francesa, não consigo ficar indiferente a essas reações frente ao ocaso do cinema. Sinto-me em extinção e prefiro perder-me com Carax e seus personagens pelas ruas de Paris. Um cinema feito com tesão.
Escrevi um ensaio mais completo sobre esse filme de Carax na Revista Cinética, que está com um dossier bem empolgante sobre o cineasta francês. Dica de leitura para quem gostou ou ficou encafifado com o filme.
O soma ao redor, de Kleber Mendonça Filho.
O primeiro longa-metragem de Kléber Mendonça Filho tem o mérito de apostar na narrativa e de saber desenlaçá-la com calma, precisão e, ainda, valorizar o suspense. Numa leitura óbvia, o melhor do filme está na requintada atmosfera sonora e no seu poder sugestivo. Pelo som, o espectador vai compondo paisagens, tecendo geografias, percebendo os afetos dos personagens. De uma rua chega-se à Casa-Grande, ao coronelismo em Pernambuco persevera à revalia dos séculos. O filme tem o mérito de colocar esse problema – essa fenda social – sem deixar que ele sobressaía aos rumos dos seus personagens. É um filme que precisa ser revisto e certamente merece uma critica mais minuciosa.
Ha Ha Ha, de Hong Sang-Soo
O filme é de 2010 mas estreou esse ano no Brasil. Obra singela, de conversa, de papos intermináveis, de trocas de casais e uma bohemia . Sang-Soo tem um estilo muito prosaico de filmar que valoriza o cotidiano de uma maneira próxima de Ozu e de toda essa filosofia que vê mais beleza nas coisas que se repetem do que nas mudanças. Do poucos filmes de Hong Sango-Soo que vi reparei que ele tece uma dramaturgia da hesitação. Sim, seus personagens são construídos sob a sombra da dúvida e nela ficam durante quase o filme inteiro. Como se o cotidiano fosse o espaço paradoxal que abriga as nossas dúvidas atenuadas pelo automatismo das obrigações do dia a dia. Isso é o oposto da dramaturgia aristotélica na qual a dúvida deve ser apenas um momento de tensão para a escolha, a resolução e o objetivo dos personagens. Sei que parece paradoxal – e de fato é mesmo – mas para mim a melhor parte do cinema contemporâneo ergue-se construindo um realismo que tem na dúvida um dos pilares. E para complicar mais ainda basta lembrar de Miguel de Unamuno que dizia ser a dúvida a base da fé… .Mas Unamuno é ocidental e católico demais para Hong Sang-Soo.
Girimunho, Clarissa Campolina, Helvécio Martins
Um filme de paisagens e com presença forte de um personagem extraordinário. Encontra-se, aqui, pelo roteiro, o ponto certo entre a fabulação e a narrativa. A morte, sempre a morte, de tão concreta, ganha asas próprias e isso destila uma delicadeza que transforma-se na força do filme. São óbvios os ecos de Guimarães Rosa e Apichatpong, o que não diminuí a obra, que tem força própria para nos conduzir a todo um universo cosmológico, sem o espanto do exótico, bem antropológico, nem a má consciência do olhar urbano. É do local, da sua força, que emana-se uma história. Simplesmente voamos com Dona Bastu.
Fausto, de Alexander Sokurov
Fausto parece o epílogo da tetralogia que filme Lênnin, em Taurus, Hiroshito, em O sol, e Hitler, em Maloch. Sokurov busca fazer um longuíssimo e profundo ensaio histórico sobre a ontologia do mau. Para isso, Fausto serve como uma luva. É desse receio do medo, do inexplicável, que nasce Mephisto. O diabo, aqui, é menos um ente do mau do que o espelho da vaidade de cada uma dessas figuras, seja Fausto ou as personagens políticas do século XX que Sokurov filmou. Se fosse para resumir numa frase eu diria que políticos dessa estirpe não amam. Tragédia de Fausto está nessa perda do amor que serve como base para a construção de um projeto de desenvolvimento. Esse mito arrepia e o filme o traz numa luz vibrante, em espaços contíguos, numa arquitetura intercalada por sombras alongadas.
Amour, de Michael Haneke
Toda vez que começo a ver de Haneke sinto um medo do que vem pela frente. Adoro seu cinema, mas sei que ele beira a um pessimismo e uma crueldade muitas vezes difíceis de suportar. Esses dias fui ver Benny’s vídeo e saí com medo de todos os filhos e de todos os pais que existem por aí. Essa pegada continua em Amour, mas certamente, está cadenciada pela aposta no afeto. Há uma troca entre os personagens, estranha e, às vezes, até perversa, mas ela existe. Não se engane quem for ver o filme esperado algo romântico. Amour toca mais fundo na morte do que em qualquer outra coisa. Lembro de Simone Beauvoir, à beira da cova de Sartre, na sua despedida, dizendo que também morria ali. Parece exagero, mas Haneke, nesse filme, quer apenas compartilhar esse face a face real com a morte. Isso, delicadamente, beira o insuportável.
Cosmópolis, de David Cronenberg
Cronenberg filma sensações estranhas e cria uma atmosfera urbana e psicológica bem bizarra em Cosmópolis. O capitalismo em colapso, o absurdo financeiro, um cabelo a ser cortado. São situações inusitadas, esquisitas, conversas que parecem sem sentido, onde, na verdade, nada mais significa, apenas passa. Dentro da limusine vemos um mundo blindado, onde nada afeta, onde não há troca, mas apenas o desfile da superfície que produz crises, inventa e dissolve países. Acho, nesse filme, que Cronenberg conseguiu filmar a essência de uma mentalidade pós-industrial. Por isso, talvez, tudo soe tão volátil.