Arquivo da tag: Ozu

Pina, de Wim Wenders

Os documentários de Wim Wenders possuem três características bem claras que diferenciam-se das suas ficções. A primeira marca seria a amizade, ou um gesto de admiração por aqueles que retrata. Os docs mais célebres, nesse recorte, são  Um filme para Nick, no qual acompanhamos o lento definhar rumo à morte de Nicholas Ray e Tokyo –Ga, que homenageia Yasujiro Ozu. Tanto Ray quanto Ozu são personagens que inspiram Wenders, e com quem ele tenta, direta ou indiretamente, conversar. Uma segunda tendência em Wenders é a reflexão sobre artistas e a arte – este, sim, seria o tema dos seus Docs. Até mesmo em Quarto 666 e Bunea Vista Social Club o que vemos são cineastas e músicos não apenas falando sobre a sua profissão mas compartilhando inquietudes, dilemas éticos caros para quem vive de criar, seus fantasmas, seus demônios. Lendária é a declaração de Michelangelo Antonioni em Quarto 666 confabulando sobre o futuro do cinema – e são impasses estéticos similares que Wenders suscita nos artesãos que entrevista. A terceira marca seria o ensaio – e esse tom mais fluido e subjetivo é certamente o que melhor caracteriza a aura estética dos Docs de Wenders. Mais do que uma tese, uma homenagem comum ou uma simples observação, Wenders busca criar caminhos tortuosos, instantes de troca e diálogos, nos quais se coloca, como autor e artista, lado a lado de quem filma e de quem assiste. Ele procura o sujeito que retrata a partir da câmera – esse estilo é delicado, quase imperceptível. O ensaio torna-se um gesto estético, a sua voz nos conduz, entre as mais variadas digressões, lidando com uma tradição estilística mais próxima de Montaigne do que de Adorno. É como ensaio, portanto, que os documentários de Wenders transformam-se em obra.

Pina (2011), seu último trabalho, embaralha todas essas três características e sugere uma nova formatação, ora mais interessante, ora um tanto decepcionante. É óbvio que não devemos julgar esse filme de Wenders considerando apenas as marcas de um estilo anterior, nem podemos restringir um diretor encouraçado-o com suas experimentações estéticas prévias. Instigante é o artista que lança-se a novos desafios, sabe reinventar-se, desrespeitar-se e ainda provoca seus espectadores e críticos. Visto assim, Pina revela somente ousadias. Afinal, filma-se a dança – arte veloz para a câmera, coreografias complexas e tenta-se prescindir de narrativas e apresentações mais convencionais de Pina Bausch. Wenders opta por inserir o espectador no meio de um pout-pourri de peças famosas de Pina e do seu grupo de Wüppertall. Com pouquíssimas falas, o que revela uma acertada aposta em transmitir a dança pela dança.

Mesmo que o documentário tenha sido feito depois da morte de Pina, quem nos deixou em 2009, Wenders chama os dançarinos como parceiros e persiste em criar novas situações cênicas e coreográficas por meio de diálogos com os dançarinos. Dessa forma, o filme deixa de ser apenas um registro de espetáculos e reivindica para si momentos de forte atração visual e apelo sinestésico. Monumental e espetacular, portanto, o estilo do filme prefere sensações em três dimensões do que ensaiar, errar e improvisar junto com Pina e seus dançarinos. Basta lembrar dos números marcantes do Café Muller (cujo original você pode ver na íntegra AQUI), das cenas em Wüppertal, cidade que acolheu Pina, ou das seqüências com água. Todas sugerem sensações puras, relâmpagos dramáticos, e revelam um documentário que guia-se pelo estético. Até aí não vejo problema algum e considero que todas essas decisões de Wenders são acertadas. Elas fazem de Pina um filme que deve ser visto com entusiasmo, para dançarmos com os olhos.

O meu ligeiro incômodo, bem pentelho e crítico, confesso, está numa subliminar canonização da artista Pina Bausch. Sua recente morte inocula uma compreensível melancolia, uma sensação de luto ainda não trabalhada e uma homenagem verticalizada. No filme, os gestos coreográficos de Pina são sobrevalorizados pelos dançarinos, como se tudo que ela decidisse fosse sublime, perfeito e irretocável. Os “herdeiros” parecem que não perderam apenas uma coreógrafa, mas uma líder, uma heroína. Nesse sentido, o documentário se aproxima mais de um estilo clássico (meio piegas) e norte-americano, do que propriamente uma tradição que tenta valorizar a obra – suas imperfeições, porosas, humanas, tal como num ensaio – frente a persona impecável do artista. Não por acaso, prefiro esse crepúsculo dos ídolos que Nietzsche nos chamou a atenção na sua polêmica contra Wagner. Se houver um Deus, que ele dance – e conosco.

Talvez Merce Cunningham, outro artista importante para a dança moderna, nos lance uma pista. Como budista, ele se preocupou em esvaziar qualquer legado que exaltasse sua obra (você pode ler uma boa reportagem sobre Cunningham AQUI). Pediu que, após sua morte, os dançarinos do seu grupo fechassem a instituição; que buscassem outros métodos e que só fizessem mais algumas apresentações. Era preciso colocar um ponto final. Seu argumento? A dança é a arte do instante, do gesto efêmero – ela não pode e nem deve ser canonizada. Essa insistência ocidental de uma misteriosa duração eterna seria contra a ontologia da dança. Não sou budista e creio que essa atitude seja tão radical quanto coerente. No entanto, acho que Cunningham nos deixa um exemplo interessante, sobretudo numa tradição de canonizar os artistas que nós – e muitos documentaristas – compartilhamos e alimentamos.

A arte do retrato deveria encarar com mais tranquilidade nossa inevitável finitude. Uma vez ouvi, ou li, sei lá, alguém que disse: “é preciso aprender a morrer”. Pois, será preciso. Ainda que o cinema seja a arte da persistência da retina contra o tempo que perece `a nossa frente. Ainda que Pina mereça todas essas homenagens feitas por Wenders, e que sua obra deva sim ser difundida por todos. Ainda assim, devemos nos questionar se não temos o ímpeto de substituir santos por artistas e se, algumas vezes, não naturalizamos uma estranha e perigosa devoção.

Às vezes, prefiro o gesto iconoclasta. Ou aquele outro, mais sutil, que desdenha efemérides. Certamente, a melhor homenagem – a qualquer indivíduo – é a conversa, a troca, a crítica, a observação, a escuta. Gestos que dissipam-se quando estamos embevecidos por um afã de canonização.

1 comentário

Arquivado em Artes Visuais, Cinema contemporâneo, Dança, Docs, Filmes atuais, Hollywood, Oscar, Referências