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a arte de observar sem julgar

– Luz Silenciosa, Carlos Reygada

Filmar sem cortar. Deixar gravando enquanto a cena acontece e o mundo desfila entre lentes e retinas. O plano-sequência é um dos recursos mais misteriosos e enigmáticos da linguagem cinematográfica. O cineasta russo Andrei Tarkovsky costumava enaltece-lo como a essência da sétima arte. Para ele, o plano-sequência revelaria uma certa verdade que pulsa no mundo, uma verdade com um quê extremamente metafísico. O plano-sequência, portanto, seria a força-motriz do ato de esculpir o tempo, fundamental, para Tarkovsky, na tessitura cinematográfica.

 – Damnation, Bella Tarr

É curioso perceber como há um retorno a primazia do plano-sequência por parte de um grupo contemporâneo de notáveis artesãos da sétima arte. Bella Tarr, Carlos Reygadas, Alexander Sokurov, Hou Hsiao-Hsien, Tsai Ming-Liang e Julio Bressane são cineastas que deixam a cena fluir. Parece que não há intervenção de roteiro ou mesmo uma mis-en-scene. Soa como se estivessem buscando um fluxo ininterrupto entre as falas, os movimentos de câmera, os gestos, o que passa na profundidade de campo. `A primazia do plano-sequência vemos uma aproximação com enquadramentos mais primorosos. Neste prisma, os cineastas tornam-se pintores. Quase pintores clássicos. Compõem para filmar e filmam como se estivessem regendo uma composição. E nesses momentos, atrelada ao sublime, a mágica da imagem é sensível – mais importante que a estória a ser sentida.

– Nostalgia, Tarkovsky

Por isso, penso que esses cineastas acabam se filiando a uma tradição mais apolínea, mais clássica, próxima ao rigor dos enquadramentos geométricos, com perspectivas bem definidas e possuem uma forma de lidar com o belo que não é a mesma que herdamos dos movimentos artísticos modernos. O belo, nesse aspecto que já foi canônico, revela valores de harmonia, equilíbrio, onde o conjunto, o todo é tão importante quanto as partes. Há um aspecto religioso e metafísico. Voltamos aquele velho valor grego segundo o qual a verdade, a beleza e a ética seriam uma coisa só

O espelho, Tarkovsky

Mais do que vê-los, `as vezes me flagro a ouvir esses cineastas. A tentar escutar as suas cenas, suas seqüências. É no som que eles mostram-se  compositores e, inclusive, menos clássicos. O som dos seus filmes poucas vezes respeita o realismo ou torna-se uma muleta das emoções que a cena em si não passa. Mesmo o som direto coloca objetos e ruídos poucos convencionais em primeiro plano. E a trilha sonora foge da sua habitual verve dramático-conotativa para espairar, sugerir, convidar o espectador a se deleitar com as suas próprias sensações.

Mãe e Filho, Alexander Sokurov

Lembro do som rústico da musica húngara de Bella Tarr; nos ruídos sobrepostos que, aos poucos, formam um sinfonia na cena de abertura de Luz Silenciosa uma bela obra de Carlos Reygada; a música delicada e clássica de vários momentos poéticos de Sokurov; o som direto, imponente, seco e estarrecedor do  Tsai Ming-Liang que abre espaço para contemplarmos sua trilha pop; a música em som mínimo, quase imperceptível, que Hou Hsiao Hsien coloca em O Balão Vermelho e Café Lumiére. Junto com uma concepção visual mais próxima do clássico vemos uma música sensitiva, limpa mas sobreposta, complexa, nos convidando para além das margens, bordas e molduras dos rígidos e belos enquadramentos.

O Balão Vermelho Hou Hsiao-Hisen

Aliás, sempre penso que uma das primeiras características formais da arte contemporânea é essa de compor com justaposições, sobreposições, camadas sobre camadas como nos layers que abrimos nos photoshops. Essa tendência encontra-se na música eletriônica, na literatura, nas artes visuais, na quantidade de telas, janelas e páginas que abrimos simultaneamente. Não somos mais os bricoleurs do século XX. Costuramos sentidos absorvendo, sabe-se lá como, essa profusão de signos que deglutimos todo dia.

What time is it there? Tsai Ming-Liang

Observar sem julgar.Acho que foi de Confúcio que o cineasta Hou Hsiao Hsien tirou essa máxima estética. Repito-a aqui, como uma chave para tentar desvendar um pouco de um tipo pujante de cinema. É impressionante como esse ato de observar destituído de julgamento rima com a objetiva, a lente da câmera, a retina do espectador. Observar é, inclusive, um comportamento ético completamente distinto do voyeurismo, que, paradoxalmente, pressupõe um estado de perversão por parte do espectador. Sempre penso que para uma câmera, não há a menor diferença entre uma pessoa, um objeto, uma animação, uma sombra, uma cor. A máquina é fria e imparcial frente aquilo que registra  (e de certa forma, com esses conceitos, voltamos aos lumiere e `a câmera-olho de Dziga Vertov). Imprime sentido quem manipula os frames, quem os vê. Distender os símbolos e sentidos do que é filmado, esvazia-los `a exaustão, para apenos senti-los como olhos de criança, Para, quem sabe, voltar a ver o mundo como se fosse uma primeira vez. Isso não é pouco.

Talvez esses cineastas contemporâneos busquem esse novo equilíbrio ético e estético; uma forma de inserir a linguagem audiovisual fora dos parâmetros clássicos (do voyeurismo); um afã por abrir novas sendas para além da herança  da arte moderna.

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