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Cine-filhos de Paulo Emílio

O artigo abaixo foi publicado no livro “Paulo Emílio Salles Gomes: o homem que amava o cinema e nós que o amávamos tanto” organizado por Maria do Rosário Caetano. Foi lançado recentemente na Mostra SP e no Festival de Brasília. O livro está bem legal com fotos, depoimentos, artigos e entrevistas. Tem colaborações de Carlos Reichenbach, Antonio Candido, Ismail Xavier, Matéus Araújo, Lygia Fagundes Telles, que foi casada com Paulo Emílio, entre tantos outros. Escrevi algo mais pessoal e enfatizo como minha descoberta da trajetória e da obra de Paulo Emílio, ali, nos meus anos uspianos, me inspiraram a seguir a trilha da crítica, da política e dos estudos de cinema.  Boa leitura.

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Toda febre cinéfila gera um convite à filiação. Os fãs escolhem atores para imitar e homenagear. Os que vivem da sétima arte, filiam-se a gêneros, manifestos, diretores. Peculiar, a cinefilia que leva à crítica não costumaria fugir à regra. No entanto, quem realmente guia-se por um crítico quando escreve sobre um filme?

No Brasil, uma filiação crítica começaria no nome de Paulo Emílio Salles Gomes. Sou contemporâneo de uma geração que nunca usou uma Remington ou uma Olivetti para escrever sequer uma linha sobre um filme. Quando começamos a amar o cinema, Paulo Emílio já tinha partido há mais de uma década. Contudo, como todo leitor, como todo cinéfilo, criamos nossas formas íntimas e místicas de ouvir, ver e conversar com os mortos que admiramos.

Ainda me lembro das minhas idas ao Cine Brasília, das palmas e vaias nas noites de Festival – e de uma foto P&B de Paulo Emílio, sorridente, sentado naquelas mesmas poltronas marrons. Depois, já na São Paulo da minha graduação, tive aula com professores que foram alunos e aprendizes de Paulo Emílio. E, assim, como a transmissão de uma narrativa tradicional passada oralmente conheci suas ideias e passei a imaginar sua retórica, sua verve política. Outra sinapse de pós-memória criou-se quando fui estagiário da Cinemateca Brasileira, onde Paulo Emílio ronda como um espectro shakesperiano. Lá, pude ver alguns dos seus livros na estante. Eventualmente, manuseá-los, lê-los. Com olhos curiosos, conheci autores que ele devorava com entusiasmo e entre as mesmas páginas brota a inquietação de traçar caminhos similares.

Não é em vão que compartilho parte da minha trajetória. Homem de cinema, Paulo Emílio foi também impelido ao tema e à índole da formação. Formação: uma palavra-síntese da sua biografia e obra – e um tema caro à própria geração do jovem Paulo Emílio. Não por acaso, essa mesma palavra aparece repetitivamente nas principais obras de Antonio Candido, Décio de Almeida Prado e Lourival Gomes Machado, os críticos de literatura, teatro e artes visuais da revista Clima dos anos trinta. Todo o trabalho dessa geração trouxe períodos e artistas brasileiros para a cena da crítica e dos estudos acadêmicos influenciados pelos modernistas de 1922.

Esse horizonte modernista, que possivelmente acabou por trazer Paulo Emílio a Brasília, induziu-o à formação de um aparato institucional para o cinema brasileiro. Se o compararmos com a cena francesa, Paulo Emílio seria a inusitada fusão de Bazin, Langlois e Malraux. De um lado, um intelectual que elaborou os pressupostos conceituais da crítica da geração do cinema novo. Paralelamente, foi o fundador da Cinemateca Brasileira e esse singelo gesto possibilitou a construção de uma historiografia mínima permitindo os alicerces da nossa memória audiovisual. Havia a preocupação de criar condições para institucionalizar diretrizes de uma política cultural atenta a preceitos modernos.

Sem sua persistência o cinema que hoje chamamos de brasileiro dificilmente teria saído dos seus ciclos anódinos e isolados. Na prática, a formação de Paulo Emílio foi traduzida pelo seu empenho em criar os primeiros cursos de cinema, na USP e na UnB, e pelo profícuo espaço de debate que culminou no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Hoje, o Brasil possui cerca de trinta cursos graduação e pós-graduação em audiovisual e centenas de festivais.

Na sua obra, a formação traça uma linha transversal comum aos seus principais livros. Paulo Emílio não é apenas o melhor biógrafo de Jean Vigo, mas escreveu uma vibrante narrativa sobre a construção da cena anarquista francesa do início do século XX. Por isso retrata Miguel Almereyda, pai de Vigo, e percebe uma pulsão poética e política que transmite-se ao filho e impregna-se nas celulóides filmadas pelo jovem cineasta. Ao retornar ao Brasil, Paulo Emílio escolhe o jovem Humberto Mauro, nos seus anos cinéfilos em Cataguazes, quando desconhecido, fugindo do seu curso de engenharia para brincar de cinema com a sua Pathé de  9,5mm. Lúdicos e errantes, os anos de formação foram a fonte de inspiração estilística de Paulo Emílio.

Da mesma maneira como as formações não são retilíneas nem coerentes, é preciso reconhecer que filiação não rima com repetição. Pelo contrário, admitir a influência de um crítico passa, como uma forma de homenagem, por criticá-lo. Digo isso pois a agenda e o projeto dos últimos anos do cinema, da crítica e dos estudos feitos no Brasil dialogam de uma forma interessante com o legado de Paulo Emílio.

Desde o início da retomada, por volta de 1995, o cinema brasileiro vem contrariando uma das principais teses estilísticas e econômicas de Paulo Emílio. Refiro-me a “incompetência criativa” de copiar os formatos hegemônicos e hollywoodianos de narrativa e distribuição de filmes. É claro que há nuances nessa resposta, mas desde filmes como Central do Brasil e Cidade de Deus busca-se não apenas um diálogo com o público e a aposta de um cinema industrial mas uma forma de interagir sem medo com a tradição dos gêneros hollywodianos. Copia-se, sim, bem, e com certo orgulho.

A outra face desse diálogo teria um desdobramento mais pós-colonial. A geração de Paulo Emílio significou um conjunto de indivíduos sintonizados em construir uma nação. Hoje, somos uma nação – de cinéfilos – com uma crise dócil frente essa mesma idéia de nação, e composta por indivíduos afoitos por singularidade. Não se guia mais pelo tema de um cinema industrial, mas por formatos leves de produção, que buscam um diálogo com públicos de nicho. Tampouco incomoda um cinema “subdesenvolvido”, mas sim uma estética pautada em valores eurocêntricos. Não nos preocupamos muito com a possibilidade de criar uma imagem nacional, ou representarmos um povo brasileiro nas telas, mas busca-se uma poética dos afetos entre indivíduos que traçam uma rampa comum entre quem está na tela e quem está na poltrona.

São outros tempos, outras inquietações, outras palavras, distintas, que nos induzem a uma diferença prática e teórica frente aos que nos antecederam. O jogo da crítica é um jogo entre imagens, palavras e conceitos. Um jogo em slow motion, talvez, que exige uma maturação bem diferente da afobação dos lançamentos semanais. Sem Paulo Emílio, esse jogo, aqui, nesse cerrado adusto onde escrevo, talvez tivesse outra fisionomia mas certamente não seria tão empolgante

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