Justiça

Lançado em 2003, o documentário Justiça de Maria Augusta Ramos revela, de maneira discreta e precisa, a precariedade e certos equívocos do poder judiciário brasileiro. Com um forte estilo observacional, uma fotografia seca e uma câmera sutil nos movimentos, o espectador é convidado a ser voyeur no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro – um local onde, todo dia, circulam presos, réus, juízes, promotores e advogados; onde desfilam preconceitos, pequenas humilhações, vaidades mil e um estranho silêncio frente as atrocidades que rondam por lá. São esses os personagens – os profissionais e as vítimas da justiça – que a diretora busca retratar. É para este  teatro que se direcionam suas câmeras e lentes.

Seria estranho afirmar que é no tribunal onde vemos o abismo da justiça, embora seja justamente isso o que observamos – um abismo de classes. O roteiro do filme enfatiza réus que respondem por processos de pequenos crimes, furtos e apreensões suspeitas da polícia. Contudo, ao longo do filme aprendemos a suspeitar das suspeitas da polícia. Também desconfiamos das declarações dos réus e das boas intenções dos juízes e defensores. Rapidamente nos vemos diante de um quadro social no qual emerge um jogo de verdades e mentiras. Um jogo no qual conta apenas o interesse individual, imediato e mesquinho.

Sim, a maioria dos réus que acompanhamos declaram-se direta ou indiretamente envolvidos com o tráfico de drogas e certas práticas de assalto. No entanto, eles não respondem pro processos dessa natureza, mas por delitos ancilares e realmente menores. Em alguns casos, o preconceito emerge para condenar os réus frente aquilo que eles não respondem.

Um dos personagens cuja vida é filmada acaba solto – e numa das belas sequências do filme vemos esse menino, com pouco mais de dezoito anos, saindo de chinelos da delegacia e, sozinho, entrando no ônibus. O outro fica preso por três anos, por ter por estar circulando num carro roubado. É evidente que ele não foi preso apenas por isso. E essas evidências são trazidas pela câmera.

Paralelamente, Justiça enfatiza o teatro do poder tão bem desempenhado pelas autoridades. São discretas as cenas em que os juízes vestem a toga e se relacionam simbolicamente com ela. Como se estivessem embevecidos por um poder de natureza monárquica. Uma das juizas mostra-se emocionada ao se despedir da sua toga, pois assumirá como desembargadora num ritual que mostra tudo e todos tão distantes, frios e cegos como a justiça é representada.

O silêncio da defensora pública também é angustiante. Não há garra, não há paixão mas uma cosimeração, um pedido metafísico de ajuda quando faltam ações ordinárias, cotidianas e simplesmente profissionais. Frente a esse teatro, os réus correspondem como súditos suplicando, entre gestos de piedade, por melhorias mínimas de condições de vida nas celas.

O que vemos é um liberalismo cruel e silencioso. Sob o qual os réus filmados sequer  se arvoram ao direito da defesa. Afinal percebem inócuo recorrer frente a face vingativa desta justiça que os encara. O que vemos é um sistema com características medievais e um poder judiciário conservador, poder este que, dentre os três que formam nossa república, evidencia-se o mais distante de um exercício democrático efetivo. No entanto, o poder judiciário é opaco, inatingível e intocável… .

Ao final do filme escutamos uma frase da defensora pública para a mãe de um réu condenado a cinco anos de prisão. Talvez a frase resuma a postura da justiça. Ela diz: “é preciso ser forte, e pedir por Deus para dar tudo certo”. É irônico. Aqui no Brasil, a justiça dos homens ainda reivindica uma certa clemência divina.

2 Comentários

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2 Respostas para “Justiça

  1. Andréa

    Pablo, querido

    Não conheço esse documentário, mas sua avaliação me deixou tentada. Quero assistir.
    Saudades. Beijinho no Theo.

  2. Xyz

    Rico fudendo pobre. Nos extras do DVD podemos ver a diretora falando muitas asneiras. Ela estudou cinema lá fora e aprendeu certinho o que gringo quer ver na tela. O “efeito havaianas”, ou seja, empacotar a desgraça do 3º mundo pra europeu degustar na segurança se suas salas de estar, com suas havaianas nos pés e sentir por alguns minutos o que é ser um fudido no Brasil, a muitos quilômetros de distância da desgraça. Se me lembro bem quando assisti, as câmeras que mostravam os réus estava sempre do ponto de vista superior, diminuindo mais ainda essas pessoas. Que venham documentários produzidos pelos fudidos e desgraçados utilizando esses cidadãos da “justiça” trancafiados num cativeiro bem imundo e usando havaianas com as tiras remendadas. Isso já seria quase sexo explícito. Eu ia gozar na hora!

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