Um dia antes de começar o “novo” Festival de Brasília publiquei no Correio Braziliense esse artigo que compartilho logo abaixo. Espero que contribua para o debate que devemos ter. Afinal, esse festival é uma construção coletiva, de milhares de mãos, de décadas. Ele não pode ser privatizado!
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Cine Brasília, 1967. Estamos numa das primeiras sessões do Festival. Dentre os filmes programados havia uma surpresa: uma obra de vinte minutos que não listava na seleção pois não obteve o aval dos seus financiadores. Mesmo clandestino, o filme foi visto, comentado, discutido. Por uma decisão ousada dos curadores, completava-se o ciclo de toda obra audiovisual: das telas, projetava-se às retinas de cidadãos, candangos, brasileiros. Uma exibição, portanto, desafiava os ânimos afoitos do afã de censura que marcou aqueles anos.
Talvez seja mera ironia, talvez um acaso fortuito, mas esse filme chama-se Brasília: contradições de uma cidade nova, de Joaquim Pedro de Andrade, e certamente é uma das melhores obras já feitas sobre esta cidade, sua utopia, seus descaminhos. Singular, esse episódio revela o espírito que marcou o Festival de Brasília nas últimas décadas. Um espírito de resistência, teimoso, que pautou de maneira determinada os rumos estéticos dos filmes feitos no Brasil. Se não fosse esse ímpeto “subversivo”, essa doce desobediência civil, provavelmente não conheceríamos o filme de Joaquim Pedro e eu não o citaria nestas linhas.
Essa curadoria inquieta parece arrefecida nos atuais rumos do nosso Festival. Quando digo curadoria remeto a um gesto ético que está concentrado na raiz da palavra. Etimologicamente, curadoria relaciona-se com cura, mas na acepção de cuidado e zelo; ou seja, uma forma de condução que dosa prudência com ousadia, que assume riscos e grifa um sentido entre o passado e futuro. É evidente que uma curadoria contemporânea não pode fiar-se rigidamente em conceitos de outrora. Uma boa curadoria é atenta a renovações; caso contrário, perece. Uma boa curadoria rima com projetos claros, bem definidos, e uma regência que lidera o debate para horizontes precisos – ela não apenas inova, mas gera polêmicas necessárias.
É nesse sentido que não podemos restringir uma curadoria à escolha dos filmes selecionados, a alterações pontuais nas regras de um certame, as decisões da comissão julgadora, ou ao aumento da cifra dos prêmios. A curadoria lida com outra grandeza, pois provoca conceitos e gera valores simbólicos, e por isso ela é qualitativamente distinta de um mero e simples gerenciamento de evento. Seu zelo, quando cinéfilo, revela-se, simultaneamente, no conjunto e nos detalhes. Sente-se uma curadoria na escolha dos homenageados, nos temas e nas propostas de debates ousados, nos filmes e artistas convidados, no cuidado verdadeiro e equânime com todos os cineastas envolvidos; ou, em resumo: numa preocupação para aquilo que ficará depois de passada a euforia midiática, quando desbotam os extravagantes cartazes publicitários e ainda pulsam um instante, uma imagem, uma idéia, uma cena.
Talvez haja dois movimentos históricos que, paulatinamente, destilaram essa força curatorial do festival de Brasília. O primeiro diz respeito à pauta do “cinema de retomada”, que pode ser resumida numa preocupação em gerar filmes comerciais, bem-feitos, que criem um efetivo diálogo com o público. Para além de uma recuperação da produção, a “retomada” buscava propiciar um aparato legislativo, financeiro e comercial que cravasse um novo ciclo do cinema brasileiro. Embora fundamental, esta pauta nunca foi a principal tônica do Festival de Brasília. Tanto o é que quase nenhum desses filmes passou pela arena da 107 Sul.
O segundo movimento está mais próximo do chamado “cinema de autor”. Dos anos 2000 aos nossos dias surgiu uma nova geração de críticos, cineastas, cinéfilos, estudantes e profissionais de cinema. Uma geração extremamente heterogênea, com inquietações artísticas diversificadas e afoita por criar uma agenda para o cinema brasileiro. Acelerada pela internet, impulsionada por políticas do MinC que apoiavam festivais em centenas de cidades no Brasil, uma nova tendência estética vem pouco a pouco conformando-se.
O fato é que essa pauta política e essa agenda estética – que era predominantemente do Festival de Brasília – já não passa mais por aqui. O fato é que a preocupação do Festival se afastou dessa renovação da crítica e, nesse hiato, caducou. Perdemos todos. A esfera pública do cinema brasileiro teve em Brasília sua ágora, a qual, agora, parece esfacelar-se enquanto ainda disputa-se as migalhas de um evento eivado por interesses imediatos e um orçamento estrondoso.
O Festival de Brasília deveria assumir sua crise e seu impasse. Mais do que colocar-se em pauta, ou maquiar-se por meio de um verniz publicitário, ele poderia ser uma ponte para essa emergente geração de cinéfilos debater novas formas de partilhar a sensibilidade que nos habita. Para alem da unicidade estanque de um cinema brasileiro, pautar um cinema federalista, policêntrico, autônomo frente ao discurso hegemônico do eixo Rio-SP. Aqui em Brasília, na sua idéia original tão bem resguardada no Festival, a diversidade brasileira sempre pulsou de uma maneira ímpar. Sem vícios da indústria, ranços acadêmicos, vaidades da crítica, ou pelejas regionais. É essa esfera pública, policêntrica e cinéfila, que devemos recuperar. Não é apenas uma tradição do festival de Brasília. É algo mais: um patrimônio, talvez, do cinema que ousamos chamar de nosso.