Cisne Negro, uma mulher feita em filme

Compartilhar leituras, compartilhar visões. Ora distintas, ora complementares. Se a internet renova e areja esse gesto fundamental, essa ética da troca, caberia aos blogs também introjetá-lo em seu discurso (que, certas vezes, soa pessoal demais). Há algum tempo penso em trazer para esta página textos inquietos de outros críticos que acompanho e admiro. Os blogs coletivos, creio eu, pouco a pouco afirmam-se como um dos  espaços mais fecundos para a crítica e para a partilha de conteúdos estéticos. Eles possuem visões diversificadas e de qualidades similares e se diferenciam das revistas especializadas por disponibilizarem espaços mais fluidos (e passionais) do que aqueles definidos pelas rígidas linhas editoriais.

O texto abaixo foi escrito pelo crítico e pesquisador Ciro I. Marcondes. Aqui em Brasília seu trabalho vem obtendo um crescente destaque. Suas aulas e seus cursos de história de cinema paulatinamente confirmam-se como referência para uma nova geração de cinéfilos e profissionais e assemelham-se a importância que o Sérgio Moriconi adquiriu nos últimos anos para o debate cinematográfico da capital. Conheci o trabalho do Ciro há alguns anos e acompanhei a sua minuciosa e profunda análise de Limite, filme inaugural do cinema de poesia no Brasil e no mundo. Quem quiser, pode fazer AQUI o download da sua dissertação e tenho certeza que descobrirá novas camadas poéticas dessa obra-prima do Mário Peixoto.

A crítica que segue abaixo é de Cisne Negro, do Darren Aronofsky. Um filme contemporâneo, portanto, que merece uma reflexão mais acurada. Ciro nos mostra como o diretor de O Lutador articula diversos gêneros e momentos da história do cinema Espero que o leitor desgute o texto e passe a companhar o trabalho desse crítico.

Muito se tem falado do impacto de Cisne Negro, culminado com a estatueta do Oscar para Natalie Portman, e da chegada de cineastas vindos de culturas mais alternativas aos altos holofotes da indústria cinematográfica. É o caso de antigos diretores de filmes cult, como David Fincher, de A Rede Social, e do britânico Danny Boyle, vencedor do prêmio com Quem quer ser um milionário. Junta-se a este grupo exótico o mais novo patinho feio de Hollywood, o por vezes ojerizado Darren Aronofsky, responsável por um longa típico de Sundance, cabeção e paranoico (Pi), por um filme datado antes que completasse 10 anos (Réquiem Para um Sonho) e também por um fracasso digno dos anais de Hollywood (A Fonte da Vida). O frisson em torno de Cisne Negro, porém, é tão grande no momento que várias vozes, antes escondidas entre a decepção e a incredulidade, de fãs do trabalho (potencial) de Aronofsky saem a conclamar triunfantemente: eu te disse! Eu já sabia!

O que provoca um impacto desnorteador no espectador de Cisne Negro é uma conjugação muito coesa e acessível de três fatores: uma direção arrojada, que nos alerta para a exuberância de suas próprias trucagens; uma elaboração visual essencialmente plástica que se projeta na trajetória do balé de Tchaikovsky; e a bizarra transmutação psíquica da protagonista, um anjo de cara suja que alia um suposto mau gosto dos filmes de terror e um tom kitsch dos filmes da fantasia para sobrepor algumas camadas alegóricas, potentes, pulsantes.

Este olhar pop para o horror interno é que traz a virtude de seduzir plateias diversas, fascinadas por este tipo estranho de licantropia que acomete criatura tão celestial como Natalie Portman, fazendo-as buscar, com medo e ousadia, seus próprios cisnes internos. Como se sabe, Cisne Negro trata da busca obsessiva de uma bailarina pelo papel principal em uma montagem chique de O Lago dos Cisnes, quando uma desigual identificação com o tom obscuro do balé dispara nela uma agressiva esquizofrenia. É isto que se tem dito sobre o filme, mas não é este o mote deste texto, pois essa moldura contemporânea, de versar sobre o erudito e o pop e de elaborar a beleza em um contexto pós-midiático sempre fez parte do cinema de Aronofsky. Mesmo que antes desajeitado e fora de tom, seu interesse nunca pareceu ser o de se referir a uma tradição mais clássica de Hollywood.

Daí uma ausência, ou somente uma presença filtrada pelo desdém, de interessante e bastante evidente relação que o diretor, em Cisne Negro, faz com momentos em que Hollywood voltou seu sistema contra si mesma. Momentos como o início de certa perturbação na Hollywood do pós-guerra, em 1950, quando foram lançados dois filmes que procuram sabotar a própria lógica do showbizz. Enquanto o multipremiado A Malvada (de Joseph Mankiewicz) mantém sua profunda integridade por ainda ser capaz de enganar o espectador em relação aos meios traiçoeiros de ascensão no universo do teatro, Crepúsculo dos deuses, de Billy Wilder, guarda uma relação ainda mais estranhamente próxima a Cisne Negro (e curiosamente pouco notada) por já delatar o final da tragédia em seus postulados iniciais.

Assim como 2010 marca o fim de uma década que trouxe à tona fissuras no modelo hollywoodiano para o novo século (excessiva infantilização do cinema e crescente dependência da tecnologia), 1950 marcava o fim de um era de ilusões que ainda encontra alguns ecos hoje, com finais felizes, heróis virtuosos e mocinhas castas. O sabor amargo da guerra mundial e uma rentabilidade já bem menor em Hollywood graças à concorrência da televisão obrigou os americanos a elaborarem uma visão crítica sobre este processo. Crepúsculo dos deuses trazia uma visão cínica, mordaz e noir desta transformação, em uma trama de intriga que envolve uma atriz esquecida do cinema mudo, a inimitável Norma Desmond (Gloria Swanson), que apodrece internamente, solitária e delirante, em sua mansão faraônica, esquecida pelos produtores, ridicularizada pelos roteiristas.

Crepúsculo dos deuses é um filme clássico, elegante e engenhoso, que re-compõe a tessitura tradicional do cinema norteamericano (flashbacks, voz over na narração, trilha de suspense) de maneira que o que se configura na mente do espectador é uma paisagem psicológica de sua anti-heroína, sempre se sobrepujando à trama material do filme, esquecível. De certa maneira, o que o grande Wilder fez ao verter o filme em metástase da própria personagem se consuma na última imagem do filme: o hipnótico, delirante e plurivocal adeus de Norma Desmond quando desce as escadas antes de ser presa – último close-up, desfocado e febril.

Cisne Negro, pensando no cinema de hoje, soergue de maneira robusta uma linguagem ao mesmo tempo intransitável para a Hollywood dos anos 50 e palatável para gerações atuais. Sua câmera que dança e seus monstros de vídeo-game de certa maneira também vão provocando o efeito de anunciar a tragédia psíquica da personagem, envolvendo-nos num estado previsível, mas ao mesmo tempo estranho, como em um déja-vu às avessas, quando temos já certeza de tudo que vai acontecer, mas ainda assim nos condicionamos a nos surpreendermos. Nestes filmes, o tempo é suspenso e escalamos degraus em direção ao dispositivo que é o personagem.

O plano final de Cisne Negro, por fim, com a epifania (adeus) da bailarina Nina e o clarão na tela, provoca o sufoco de resolver estas emoções mistas, afastando as névoas confusas entre o filme clássico, o trash, o kitsch, o moderno. Sem que se possa perceber, os finais dos dois filmes como que se beijam e podemos sinalizar todas as sinapses necessárias, como se a Hollywood de hoje fizesse um elogio à dos anos 50 e vice-versa, de maneira desnorteante e casual. Com a indústria em crise, os filmes deixam de ser história e lições, e passam a ser personagens.

Construção de um ego

Cisne Negro, assim, também faz do corpo do filme uma proposta analítica para a própria construção de um ego, aquebrantado em som e imagem. Estas visões de pesadelo, que erigem um monstro através de pedaços estéticos e pedaços psíquicos, parecem-se mais com um tipo de atravessamento sem referente, como se uma verdade fosse forjada pelo filme em si, do que com uma metáfora ou alegoria. Este tipo de modulação do cinema, de fraturas entre o espaço interno e o externo, num hiper-real que individualiza cada canto de um filme, era o campo fundamental de Stanley Kubrick, para quem o cinema não podia ultrapassar as fronteiras do personagem.

Como um hotel que é um homem em O Iluminado, ou uma orgia que são os olhos de outro homem em De Olhos Bem Fechados, Cisne Negro é uma mulher feita em filme, em corpo e alma. Estranhamente, esta associação com Kubrick também foi pouco mencionada, ainda que, como tenta Aronofsky, ele fosse mestre em misturar culturas de campos distintos e subverter os gêneros de Hollywood a partir de suas próprias contingências. Como Kubrick nunca venceu um Oscar, podemos deduzir que há poucas chances para este improvável novo herói de Hollywood.

Ciro Inácio Marcondes é crítico e professor de História do Cinema pela Universidade de Brasília e pelo IESB

* Texto publicado originalmente no Caderno Pensar, do Correio Braziliense, em 05/03/2011

3 Comentários

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3 Respostas para “Cisne Negro, uma mulher feita em filme

  1. Cled

    Assisti ao filme ontem e fiquei me retorcendo,
    tentando tecer análises mais profundas, o texto e as
    referências ajudaram bastante.
    Valeu!

  2. kuran

    Uma coisa que complementa essas informações tão pertinentes e referenciais sobre a estética de uma Hollywood tentando se reinventar no passado e de um Diretor que procura “apodrecer” seus personagens sempre com o foco da obstinação destemida do sucesso ou de algum sucesso é o fato de que nesta ultima faceta de surrealidade com verossimilhança só prova que a imersão público/filme, não vem necessariamente só da identificação com a personagem mas também do distanciamento indigesto.

  3. Rafaela

    Muito bom o artigo de vocês, com comentários e informações pertinentes. Eu realmente acho muito interessante a critica que o filme trás para a sociedade. Estou ate com vontade de rever esse filme, vou dar uma olhada na Programação HBO e ver quando eles vão passar esse incrível filmes.

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